Inéditos de João Gilberto Noll viram livro

18/12/2022 08:30
Por Thais Travassos / Estadão

Os noturnos do século 16 eram peças clássicas tocadas ao piano e inspiradas pela noite. Feitas por melodias aparentemente simples, são montadas sobre arpejos que, quando bem executados, são capazes de traduzir o mundo inconsciente a que temos acesso somente nesse momento de treva do sono.

João Gilberto Noll, morto em 2017, embora escritor, foi um grande compositor de noturnos. Na sua melancolia melódica, no seu delicado lidar com a escuridão, soube tratar, desde os primeiros contos e romances, desses lugares de dentro. A literatura tem muitos desses noturnos. Em Noturno à Janela do Apartamento, de Carlos Drummond de Andrade, o verso “Triste farol da ilha rasa” consubstancia na palavra poética de um eu lírico melancólico de tão consciente uma vaga esperança. Essa escuridão iluminada na névoa por um triste farol é também o que se constrói na leitura de Educação Natural, últimas narrativas de Noll. São vinte e seis contos e o trecho de um romance inacabado, precisamente comentados em um ensaio final pelo organizador do livro, Edson Migracielo.

Este noturno de Noll é peça muito bem tocada ao piano: poético e delicado. Revela aos leitores a máxima rosiana do encantamento dos mortos: Noll está agora encantado em mais um livro das suas dúbias e intrigantes personagens, cujas histórias se fazem não pelos acontecimentos, mas pelas sensações e pelo pensar caótico da poesia. O autor mesmo marcava que as preferia assim, sem fechamentos em temas específicos. No conto que dá título ao livro, conhecemos o pai de quatro filhas pelas frestas de luz que o monólogo interior ilumina. Força D’água traz o filho perdido no seu desejo, seus buracos e medos, a enfrentar a mãe e a janela do apartamento. O amigo morto se misturando a terra em Espectros é, ao mesmo tempo, interlocutor do narrador e nossa sombra. O incrível Boda nos coloca diante de uma mulher que, pelo seu desejo, se transfigura em homem amante, em São Francisco de Giotto a buscar sua alada Dama, como o santo a Jesus. E são muitos os amantes que tentam em vão saciar sua sede nas diferentes bodas narradas ao longo do livro.

ONÍRICO. Essas personagens compõem um mundo onírico, por meio da justaposição de imagens reais, interpretações eloquentes sobre essas realidades e, de repente, o absurdo: elas nos levam para um espaço de se perder no quase fantástico. Criam uma ambientação de sonho nas narrativas cujas temáticas passam pelo sexo, pelos ritos da religião, pelo amor, pela morte e, mais importante que isso, por como reconstruímos esses temas na confusão de nosso inconsciente. Somos carregados pela mão dos narradores, na maior parte narradores personagens, a caminho desses desatinos que, quando olhados de perto, revelam muito mais do que assustam. Somos mergulhados no sentimento desses seres de papel e colocados diante de figuras às vezes curiosas – como o guru que tenta fugir do lugar que ele mesmo criou para si em A Bênção do Pagão – às vezes cruéis – como o festeiro inconsequente que encontra o amante em sua cama na manhã de ressaca e nos leva ao sangue.

MISTÉRIO. A linguagem do sonho é como os arpejos para a melodia dos enredos. As narradoras e narradores, muitas vezes em uma dança de troca de gêneros, nos mostram algo que a verossimilhança nos assegura acreditar, mas três linhas abaixo desabamos no buraco escuro do surreal que se abre sob nossos pés quando rompem o engessamento temporal e espacial da narrativa realista por meio dessa linguagem poética. E o abismo é sempre incômodo: tentamos em vão nos agarrar a algum fio de realidade e somos logo deixados na contemplação do vazio. Em Amores Dementes, Noite Fatal, o personagem principal encontra seu amante na noite de Natal, até aí, comezinho fato, mas a partir da referência ao cineasta Fassbinder, somos levados diretamente ao Velho Testamento e descobrimos que o amante é um tipo particular de Lázaro. Em Sentinela Avançada o narrador-personagem descreve assim o mictório pós apocalíptico do conto: “Descarregando minha bexiga olhei-me no espelho. Fluidos de outros corpos ronronavam por ali, isso é certo, e eu agora parecia passar a mão sobre eles, dando mais motivos para suas emissões acústicas serem iguais às dos gatos. Gato eu não era, meditei sem tempo para perceber o quanto aquele ambiente era fofo e cálido.”

Nesse trecho, ronronar do gato, seu calor, sua maciez, são usados como parte da descrição do narrador no espaço, o que deixa ainda mais assustador o sacrifício que se dá ao final. São lindos arpejos. O noturno termina com uma nota mais triste: o romance inacabado. Trazendo a maestria costumeira de Noll, somos engolidos pela capacidade narrativa que passa por uma transfiguração – como Migracielo escolhe chamar a mudança de perspectiva do narrador – de fôlego que só um grande romancista pode construir. Ficamos querendo que houvesse um Jesus possível, e que Noll fosse nosso Lázaro, a voltar e terminar de nos contar sobre esse homem perdido em um hotelzinho no interior com duas gêmeas que o levam a um mistério, uma lenda, da qual ele obrigatoriamente fará parte. Infelizmente, o mundo real não permite escapadas oníricas como as das narrativas deste livro. Mas temos a sorte de ele ter sido e de ser, também, Migracielo, que nos explica, para melhor fruirmos, o que este livro é.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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