Infância roubada: mais de 50% das apreensões de menores em Petrópolis em 2019 tinham relação com o tráfico de drogas

27/01/2020 17:00

Responsável por mais da metade das prisões registradas no país, o tráfico de drogas é o crime mais comum cometido no Brasil e o que representa o maior número de encarcerados no sistema prisional brasileiro. Os pontos de venda de entorpecentes espalhados pelas comunidades fazem parte do cotidiano de crianças e adolescentes. Em Petrópolis, assim como no restante do país, a cada dia cresce a quantidade de menores de idade apreendidos nas operações policiais. 

São meninos e meninas cada vez mais jovens que trocam as brincadeiras por audiências com o juiz, as prestações comunitárias e as internações nos centros do Departamento Geral de Ações Socieducativas (Degase). A infância perdida é uma triste realidade de milhares de crianças e adolescentes que são cooptados pelo tráfico.

Um levantamento feito pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) na Vara da Infância e da Juventude de Petrópolis, mostra que em 2019, mais de 50% das apreensões de menores estavam relacionadas ao tráfico de drogas. Foram no total, 251 apreensões, dessas, 128 foram de meninas e meninos envolvidos com este tipo de crime.

O levantamento do Tribunal de Justiça, feito com exclusividade para a Tribuna, revelou ainda que os meninos e meninas estão cada dia mais cedo se envolvendo em delitos e infrações. Em 2019, por exemplo, 32 crianças com idade entre 12 e 14 anos foram apreendidas em operações policiais. “Muitos desses menores são convencidos pelos traficantes de que nada vai acontecer com eles. Que são menores e que não vão ser punidos. Isso não é verdade. O Estatuto da Criança e do Adolescente conta com medidas socioeducativas para esses menores infratores. Se eles forem flagrados vão responder pelas infrações, podendo inclusive irem para os centros de internação”, disse o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Petrópolis, Alexandre Teixeira.

“Esses meninos e meninas estão lá vendendo a droga porque existe compra. O consumo de droga em Petrópolis é algo assustador, temos uma ideia desse cenário com a quantidade de apreensões, principalmente de cocaína, feitas pela Polícia Militar. O tráfico é atraente pelo dinheiro e pelo poder que dá a essas crianças e adolescentes. Eles têm acesso às armas e com o tempo têm altos postos dentro do movimento. No entanto, são ameaçados se não pagarem o que devem, correm riscos. O tráfico não deve ser opção”. Juiz da Vara da Infância e Juventude de Petrópolis, Alexandre Teixeira. Foto: Bruno Avellar/Tribuna de Petrópolis

Assinado no dia 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa esse ano 30 anos. A lei estabeleceu os direitos e deveres de garotos e garotas com menos de 18 anos, fixando medidas especiais de proteção e assistência a serem executadas em conjunto pela família, comunidade, poder público e judiciário. 

De acordo com o ECA o menor apreendido deve ser levado para a unidade policial e depois para o Ministério Público, em um prazo de até 24 horas, para que o promotor represente pela sua internação ou não. A representação segue para o juiz da Vara da Infância e da Juventude que estabelece a medida protetiva que deverá ser adotada, dependendo da gravidade da infração. 

“A medida pode ser a liberdade assistida, a prestação comunitária, a semiliberdade e a internação. Cada uma dessas medidas tem um prazo para serem executadas e em algumas delas há uma reavaliação da conduta do menor”, explicou o juiz. Em Petrópolis, 45 meninos e meninas cumprem prestação de serviços comunitários em unidades da Prefeitura. Os locais são estabelecidos pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que também faz o acompanhamento familiar do menor.

De acordo com o levantamento do Tribunal de Justiça, em Petrópolis, 144 menores tiveram como medida aplicada pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude a internação provisória e 25 a definitiva. Os meninos e meninas são encaminhados para as unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) chamadas de Criaad. Geralmente, os menores apreendidos em Petrópolis e que tem esse tipo de medida aplicada pelo juiz são transferidos para centros em Teresópolis e em Duque de Caxias.

Condição econômica e baixa escolaridade

Segundo o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Petrópolis, Alexandre Teixeira, a questão econômica associada à falta de perspectiva de futuro e à baixa escolaridade são alguns dos motivos que levam os adolescentes para o tráfico de drogas. “A oportunidade do dinheiro fácil é um chamariz. São iludidos pela facilidade de ganhar dinheiro e, com isso, comprar tênis, roupa, celular. É preciso mostrar a eles que não há vida fácil nisso e que vão receber as medidas da lei”, ressaltou o juiz.

De acordo com os relatos dos menores nas audiências com o juiz, a entrada para o mundo do tráfico se dá por duas maneiras. A primeira quando o menino é usuário e passa a vender o entorpecente para manter o vício. Essa condição acontece geralmente nos menores acima de 14 anos. A outra forma é o recrutamento das crianças menores de 12 anos. 

“Para os meninos desta idade, os traficantes tentam ganhar a confiança deles. Geralmente eles estão na rua brincando, estão nas praças e quadras das comunidades, locais também frequentados pelos traficantes. O traficante vai até ele e pede, por exemplo, para ele comprar alguma coisa na padaria ou bar. Quando o menino volta com o troco, o traficante deixa que ele fique com o dinheiro tentando ganhar assim sua confiança. Isso vai acontecendo vários dias até que o menor passe a fazer pequenos serviços e quando se dá conta já está trabalhando para o tráfico”, disse o juiz.

Além da questão financeira, a baixa escolaridade também é um problema enfrentado pelos menores. Segundo o juiz, quase todos os meninos e meninas apreendidos deixaram a escola. “A evasão escolar acontece na transição do quinto para o sexto ano do Ensino Fundamental. Esse menino, já repetente, desiste de estudar por vergonha de estar em uma sala de aula com alunos bem mais novos. Geralmente ele está com 15 e 16 anos, quando a maioria da turma está na faixa dos 12 anos”, comentou Alexandre Teixeira, que também acrescenta a desestruturação familiar como uma das causas para a entrada do menor no tráfico de drogas.

Políticas públicas e investimento em educação

Para a socióloga e doutoranda em educação, Maria Regina Bortolini, professora do curso de Administração da Fase e da rede estadual de ensino, para começar a mudar a realidade desses meninos e meninas é preciso investimentos maciços em educação e elaboração de políticas públicas. “Acho que quando as políticas sociais são reduzidas, quando as escolas e os professores são desvalorizados, quando as famílias são abandonadas e tudo o que é valor na sociedade tem a ver com consumo e poder, a gente está oferecendo poucas opções para a nossa juventude”, comentou a socióloga.

Ela destaca que o problema da violência é complexo, com múltiplas dimensões econômicas, culturais e políticas. “Nas minhas aulas eu sempre questiono quem é uma ameaça social maior? O menino que vende maconha ou o político que rouba o dinheiro do SUS? A sociedade julga e criminaliza esses meninos em invés de investir em educação de qualidade”, pontuou a professora.

Maria Regina acrescenta ainda que não acredita na “ilusão do dinheiro fácil”. “É bem mais complexo que essa ilusão, até porque não tem nada de fácil a vida de um menino no tráfico. Há duros rituais de iniciação, convívio com a violência, risco de prisão e morte todos os dias. O contexto de exclusão e falta de assistência social a que eles e suas famílias foram submetidos coloca eles numa condição de vulnerabilidade extrema”, frisa a professora.

Para o juiz da Vara da Infância e Juventude de Petrópolis, Alexandre Teixeira, investir em cursos profissionalizantes é uma alternativa e que traz resultados na reinserção dos menores. “Colocar esses meninos e meninas no EJA nem sempre é o aconselhável. São aulas noturnas e vão estudar com adultos. Os cursos profissionalizantes são uma opção para formar e dar possibilidade de conseguirem uma vaga no mercado de trabalho. Se a escola não é mais atrativa e a falta de recursos faz com que o tráfico seja a opção então vamos garantir que esse menor tenha uma profissão e renda”, ressaltou o juiz.

Alexandre Teixeira citou um projeto que está sendo desenvolvido pela Prefeitura que tem como objetivo garantir o primeiro emprego para esse menor infrator. “Vamos criar oportunidades no mercado de trabalho para que o tráfico não seja mais atrativo e nem a opção”, disse o juiz. 

As meninas no tráfico

De acordo com os dados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ), dos 251 menores apreendidos em 2019, 28 eram meninas. Segundo o juiz da Vara da Infância e Juventude, Alexandre Teixeira, houve um aumento na quantidade de meninas apreendidas em relação ao mesmo período de 2018. “A situação delas é um pouco diferente. Elas são levadas pelos namorados ou maridos que já estão no tráfico. Acabam fazendo a parte de transporte da droga e são flagradas neste trajeto”, comentou o juiz.

Boa parte das meninas também já são mães e assim como os meninos, acabam tendo responsabilidade em sustentar os filhos e o tráfico acaba sendo o meio de vida para garantir a renda da família. “A gravidez precoce é algo que vimos com frequência. Garotos e garotas com 15, 16, 17 anos que já são pais e chegam aqui na audiência falando que precisam ganhar dinheiro para sustentar os filhos”, disse o juiz.

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