Já levamos a luta contra a desigualdade a sério
A desmemória nacional republicana cultiva uma triste tradição. Fatos históricos relevantes são desfigurados ou simplesmente ignorados. A tragédia programada do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, que resultou num incêndio criminoso, dá bem a medida do ponto a que chegamos. Criminoso no sentido de desleixo, tendo tido até verba a fundo perdido do Banco Mundial para restauração, que não foi utilizada por razões de inércia e incompetência burocráticas. Pior: a queima por atacado da memória nacional não foi apurada.
A narrativa republicana sobre a questão da desigualdade social vai na linha do foi sempre assim sem exame cuidadoso das etapas de nossa História para saber como foi. A singularidade brasileira diz respeito ao fato único de termos tido um grande número de alforrias, concedidas ou compradas, sem paralelo no mundo. E este processo ocorreu desde os tempos ditos coloniais. Em Minas Gerais, em torno de 1780, numa população de 394 mil almas, 147 mil eram negros forros, ou seja, quase 38% dos habitantes da região.
Após a independência em 1822, essa luta continuou a ser travada pelo governo do Império em bases permanentes. Dom Pedro I já era contra a escravidão por entender que ela corrompia o senhor e o escravo. Dom Pedro II e a Princesa Isabel foram na mesma direção, com medidas práticas. Em qualquer das viagens de D. Pedro II Brasil afora, o melhor presente que poderiam lhe dar nas fazendas era libertar alguns escravos. A mesma atitude era compartilhada pela Princesa Isabel em ocasiões propícias ou provocadas por ela.
E não eram apenas iniciativas individuais esporádicas. No Rio de Janeiro, por volta de 1850, cerca de 60% da população de origem africana já era livre. E o processo vinha ganhando força ao longo do século XIX no país como um todo. Na primeira matrícula geral de escravos no nosso primeiro censo de 1872, seu número era de 1.510.808, e caiu para 720.000 na última matrícula geral de 30/03/1887. Foi uma queda de cerca de 50% em apenas 15 anos. Este número comprova que 80% da população de origem africana, de 3,5 milhões, já era livre quando foi assinada a Lei Áurea, em 1888.
Os números nos revelam que o Império fez seu dever da casa sem apelar para uma guerra civil como ocorreu nos EUA. No caso americano, as perdas foram de 630 mil vidas, número muito maior que as baixas fatais ocorridas em quaisquer outras guerras enfrentadas pelo país. E lá os negros continuaram a ser discriminados, nos 100 anos seguintes, com base na doutrina (cínica) do “iguais, mas separados”, amparada por decisão da Suprema Corte. Só mudou com a luta dos negros por seus direitos civis na década de 1960.
No caso brasileiro, a legislação nunca formalizou a separação entre raças. No caso americano, houve até estados em que era proibido por lei casamentos interraciais até meados do século XX. A legislação brasileira, por sua vez, quando atuou, foi favorável aos descendentes de africanos. Na Lei do Vente Livre, além de beneficiar os nascituros, foi instituído um fundo para compra de alforrias destinado a dar liberdade aos cativos. Pesquisa da Profa. Keila Grinberg (Unirio/Ucam) de 400 processos movidos por escravos contra seus senhores, os cativos ganharam cerca de metade. Situação descartada nos EUA.
Que lições podem ser tiradas dessa luta na direção correta? A primeira delas é que o instituto da escravidão foi enfrentado com determinação, resultados e profissionalismo. A igualdade civil entre os brasileiros foi, sem dúvida, o maior passo dado contra a desigualdade em nossa História. E teria continuado com a proposta a ser implementada pelo último gabinete do Império de assentar os escravos libertos em 1888 ao longo de terras devolutas que margeavam as ferrovias para lhes dar meios de sobreviver condignamente.
Proclamada a dita república, o que foi feito nessa direção? Caminhou na direção oposta. A influência do positivismo, em que Comte propunha uma ditadura científica para o avanço da humanidade, foi a pior possível. A ele se somou a política de embranquecer a população (1889-1920), via incentivo à imigração de europeus, para que o país pudesse se desenvolver. Por trás dessa ideia, está a negação do Brasil miscigenado a despeito do fato de a população negra, mulata e parda ter sido bem sucedida no Império em ocupações que exigiam alto nível de responsabilidade e preparo técnico, como nos informa Renan Rosa dos Santos em sua pesquisa “Por dentro da África” (2019).
Pedro II pôs em prática a educação básica (ensinos fundamental e médio) de qualidade, criando na cidade do Rio de Janeiro inúmeras escolas públicas, que saltaram de 16, em 1844, para 7500, em 1889, com cerca de 300 mil alunos. E remunerando os professores em valores que são o triplo do que recebem hoje em termos reais. Dado o elevado percentual de negros livres, mulatos e pardos na capital do Império, na década de 1880, de mais de 50% da população total na época, é lícito afirmar que parte significativa deles tiveram acesso ao ensino básico de qualidade.
Essa sólida formação no ensino básico abriu as portas da educação superior para a população miscigenada, que se distinguiu como jornalistas, advogados, médicos e engenheiros, permitindo-lhes ascensão social. Os estudos e pesquisas de instituições internacionais revelam que a taxa de retorno social da população com ensino médio completo é elevada e fundamental para ter gente preparada para tirar pleno proveito do ensino superior.
É evidente a preocupação racista da república em tornar o país branco. A proposta era que em menos de um século os negros já teriam desaparecido do Brasil. Essa tese foi apresentada por João Baptista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional,no I Congresso Internacional das Raças em Londres (1911). A tese recebeu elogios “pela forma pacífica com que os brasileiros resolveriam seu “problema negro”. A tese fracassou, mas pespegou na república, em seu nascimento, em sua visão racista contra a população negra, mulata e parda.
A obra do Império foi diferente: levou a sério a luta contra a desigualdade.
**Nota: Assista minha palestra “Legado da herança luso-afro-indígena até 1889”: