Jefferson e nossos descaminhos
O mundo de língua inglesa sabe conservar valores que funcionam, ainda que cometa pecados graves como a legislação americana do “iguais mas separados” que, durante mais de século, separou brancos de negros nos EUA, mesmo após a libertação dos escravos ao término da Guerra Civil, em 1865.
Na linha dos valores e princípios saudáveis, Thomas Jefferson, no seu discurso de posse do primeiro mandato, iniciado em 1801, arrola o que ele definiu como os ideais republicanos americanos. Ainda hoje, eles são seguidos à risca e merecem, de fato, ser comemorados. Exceto o racismo renitente.
Jefferson nos fala do compromisso com a liberdade de religião, de uma imprensa livre, do instituto do habeas corpus, na proteção da liberdade do cidadão, e de julgamentos por juris eleitos com imparcialidade. Não só isso: ele defende ainda, com a visão de estadista que foi, a supremacia do poder civil sobre o militar, princípio mantido pelos americanos até hoje; moderação nos gastos públicos; o pagamento das dívidas públicas; a preservação da sagrada fé pública (a confiança); o encorajamento da agricultura, do comércio e das manufaturas; a difusão da informação; e a coibição de abusos pelos tribunais.
Em sua visão, esses seriam os valores republicanos a serem preservados.
A pergunta que não quer calar é a seguinte: ao comparar esses princípios e valores com os da nossa carta de 1824, a primeira e mais duradoura das 7 que tivemos, a que resultados chegamos? Vamos bater em uma surpreendente harmonia entre eles e o texto de nossa primeira – e monárquica – constituição. Afonso Arinos, professor de Direito Constitucional, a definiu como a melhor de todas. Também foi muito elogiada, na época, por juristas ingleses. A despeito de ter sido outorgada, ela foi capaz de preservar a defesa intransigente do interesse público como nenhuma outra da meia dúzia de constituições com que a república nos “brindou”. A última, de 1988, como previra Roberto Campos, foi responsável pelo nosso medíocre crescimento nas últimas quatro décadas em função dos absurdos embutidos nos capítulos da organização política e econômica, salvando-se basicamente a independência do Ministério Público, ao permitir investigar e punir os crimes dos altos dignitários ditos republicanos.
A carta de 1824 continha valores e princípios, postos em prática por Pedro II, em que boa parte deles nos fazem falta ainda hoje: liberdade de imprensa, de expressão, de pensamento e de iniciativa individual; defesa intransigente do interesse público; alternância dos partidos no poder; primado do poder civil; e cobrança de responsabilidade às classes dirigentes. É fácil identificar nesta lista aonde falhamos. A piora foi rápida. Já em 1915(!), Rui Barbosa afirmava que o Parlamento do Império era uma escola de Estadistas ao passo que o Congresso da República era um balcão de negócios. Aliás, muito ativo até hoje.
É digna de nota a proximidade da visão de Dom Pedro I e a de Jefferson. E Pedro II não fez por menos: ele levava muito a sério a moderação nos gastos públicos; honrar as dívidas interna e externa; o incentivo à agricultura, ao comércio e à indústria; a imprensa livre; e a vigilância para evitar os abusos dos tribunais, via poder moderador, em defesa das liberdades e direitos individuais. Neste último caso, merece registro o fato de que metade das cerca de 400 ações movidas por escravos, através de seus procuradores, contra seus senhores saírem vitoriosas na corte de última instância no Rio de Janeiro de então. Já nos EUA, o escravo Dred Scott, ao pleitear sua liberdade, ouviu do presidente da Suprema Corte, Roger B. Taney, em 1857, a sentença de que ele “não tinha direito algum que o homem branco fosse obrigado a respeitar”. E nem mesmo o de pleiteá-lo numa corte federal. E aqui, pontos a nosso favor.
Fica claríssimo, caro leitor, a nossa perda de rumo histórico e o avanço dos EUA, que não conseguimos acompanhar. Resta a esperança,que continua viva.
gastaoreis@smart30.com.br // gastaoreis2@gmail.com