João Bosco sobre o ‘mistério da criação’: ‘é preciso ter desejo e procurar’
Seria só uma imagem imposta pelos tempos de incertezas pandêmicas: um homem e seu violão no palco de uma casa de shows. Mas o homem é João Bosco e o instrumento, um dos violões brasileiros mais extensos que se pode ouvir na música brasileira. Ver apenas João e seu violão agora, no ano em que ele faz 76 de vida e cinco décadas desde o lançamento de seu primeiro registro, um Disco de Bolso encartado no jornal O Pasquim, em 1972, é simbólico. Foi assim que ele surgiu, tocando uma Agnus Sei absolutamente intrincada, com uma mão direita de dar nó nos dedos e um encaminhamento harmônico de honrar o lado A do compacto dirigido por Sérgio Ricardo: Águas de Março, de Tom Jobim.
Violão e voz estarão no palco do Bourbon Street hoje, segunda, 24 de janeiro, véspera de feriado. João, como gosta de fazer, não vem com um repertório definido e, por enquanto, sem algo que assuma o lugar de Abricó de Macaco, seu álbum mais recente, de 2020. “Eu deixo acontecer. Posso tocar algo que sempre toquei, mas de forma totalmente diferente, como posso tocar algo que nunca toquei”. Vê-lo, assim, pode ser sempre uma surpresa, e talvez seja essa a palavra que consiga manter em sua vida.
Quando tudo poderia ter ficado previsível – algo que acontece com muitos artistas que encontram seu “veio de ouro” -, ele quebrou a linha, refez o caminho, encontrou outro lugar. João falou com o jornal sobre esse fio mais trabalhoso puxado por 50 anos começando pelos últimos tempos. Ele vive os dias de pandemia cuidando-se com a mulher Ângela em sua casa, no Alto da Gávea, no Rio. São dias de criação difícil por terem tirado o encontro com o outro, algo que sempre alimentou seus impulsos e parcerias.
“Olha, mesmo o violão sendo esse companheiro, ele não consegue suprir a necessidade do estar com o outro. Eu me sento para criar algo e é como se tivesse perdido o foco. Me sinto disperso, melancólico, deixo o instrumento, volto”, conta, com a voz um tanto mais baixa. “Eu fico buscando o desejo, e isso é muito importante, o desejo. Mas vai chegando a noite e essa realidade (de um mundo ainda sob pandemia) acaba por interferir demais. Uma coisa é você querer estar só, outra é estar só por obrigação, por estar proibido de sair. É algo até para se discutir… Aquela questão cantada por Tom Jobim do ‘é impossível ser feliz sozinho’. Jobim não imaginava que um dia iríamos vivenciar essa frase como estamos vivenciando.”
A clausura de João Gilberto, para Bosco, foi produtiva porque não foi imposta. “Ele podia sair de madrugada, encontrar pessoas, mostrar as coisas que fazia. E a sua solidão era uma procura.” João Gilberto chega ao assunto em boa hora. Afinal, foi na clausura que ele lapidou um novo violão: testou levadas, passagens de acordes e emissão de voz até entregar para uma sonoridade inédita, um violão de tempo dividido com o pensamento de um tamborim e um canto soprado com a doçura de um clarinete.
E com Bosco? Até que surgisse há 50 anos, no limite que separa a intenção da canção do virtuosismo, com uma mão direita infernal e um canto que nem sempre precisa de palavras para existir, como se deu tal lapidação? “É algo orgânico, sim, mas foi preciso procurar por isso. Antes de mais nada, é preciso ter algo muito sério que é o desejo dentro de você”, ele diz, mais uma vez. A palavra “desejo” está aqui em uma dimensão mais profunda. “O desejo leva à procura por esta reunião de situações. A voz, o violão, isso não chega gratuitamente, mas muitas vezes misteriosamente. Algo que pode vir num súbito ou demorar para chegar.” Além de João Gilberto, outra experiência de procura com resultado, para Bosco, foi Dorival Caymmi.
O instante do encontro de alguns seres com o início do que será uma canção é algo a ser estudado. A melodia muda por completo se quem a cria segura um violão ou uma viola, um acordeon ou uma zabumba, ou mesmo se um violão tem cordas de aço ou de naylon. E essa melodia será ainda completamente diferente se for criada por um violonista que não está com seu instrumento. Sem fazer os acordes que emolduram a linha melódica e podem conduzi-la para outros lugares mudando as intenções de uma mesma nota, o que se tem é uma melodia pura, que João Bosco conta só ter feito uma vez na vida. “Foi depois de receber a letra de João do Pulo, do Aldir Blanc (lançada originalmente em Cabeça de Nego, de 1986). Saí para caminhar por Salvador com a letra na cabeça. Estava andando, percebendo o que ela pedia, o espaço que ocupava, suas cores. O texto produz uma música por si só. Foi quando comecei a cantar aquela melodia imaginando uma bateria de escola de samba gigantesca.”
João foi parar em muitos outros lugares por algo que chama aqui de “coragem”. Não se limitou a um brasilianismo de registro, mais óbvio, ao buscar a África virgem; não usou o sangue do pai libanês em citações superficiais ao colocar seu violão em modos orientais e foi aos boleros da América Latina com a mesma propriedade que evocou o blues. Seu violão ficou gigante, estendido, orquestral e ainda pequeno, a ponto de continuar cabendo em seu colo para uma noite a dois.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.