Jornalistas lembram cobertura da morte de Senna: ‘Nunca tinha visto fim de semana como aquele’
Roberto Cabrini e Livio Oricchio foram dois dos jornalistas que viram de perto uma das maiores tragédias do esporte brasileiro. Há 30 anos, ambos estavam no trágico GP de San Marino de Fórmula 1, de 1994, no qual morreram dois pilotos, sendo um deles Ayrton Senna, até hoje considerado por muitos como o maior da história. A outra vítima de acidente fatal foi o então jovem austríaco Roland Ratzenberger, no treino de sábado.
Passadas três décadas do triste episódio, eles lembraram dos momentos mais difíceis daquele fim de semana, em entrevista ao Estadão. “Após a morte, eu vim no mesmo avião que trouxe o corpo de Senna para o Brasil. O caixão ficou na classe executiva e o clima dentro da aeronave era de muita emoção”, recorda Livio, que cobriu F-1 para o Estadão por cerca de 25 anos.
Cabrini, por sua vez, viveu a experiência de ser o rosto da grande e terrível notícia para milhões de brasileiros. Foi que ele que anunciou, ao vivo, em TV aberta para todo o Brasil, que Senna estava morto, poucas horas após o grave acidente no circuito de Ímola. “Foi muito difícil do ponto de vista emocional. Eu tinha que anunciar a morte dele, a morte de alguém com quem eu convivia, sabendo a repercussão que a notícia teria no Brasil”, disse o jornalista.
Cabrini, que alega ser o repórter que mais vezes entrevistou Senna, disse que perdeu um amigo naquele 1º de maio de 1994. “Eu nunca deixava de fazer as perguntas que tinha que fazer, mas eu o considerava um amigo.” Ele acompanhou de perto os últimos três anos de vida do brasileiro no mundo da F-1.
O jornalista tinha acesso quase permanente ao piloto, numa época em que quase não havia restrições ao trabalho dos repórteres. Cabrini conseguia entrevistar Senna até mesmo dentro do quarto do hotel em que o ídolo estava hospedado. Fora dos GPs, tinha o hábito de jogar tênis com o piloto.
Daí a dificuldade de processar toda a tragédia daquele domingo, mesmo com a pressão de fazer bem o seu trabalho ao vivo na TV. “Acho que o momento mais difícil foi quando vi o corpo dele passar perto de mim, coberto por um lençol, no hospital. Eu tinha anunciado a morte dele havia 10 minutos. E vi o corpo passando num corredor. Minha ‘ficha’ começou a cair ali, do ponto de vista pessoal. No profissional, eu já tinha anunciado a morte. Foi tipo ‘acabou, né?’ Acabou uma era. Foi uma imagem muito intensa.”
Cabrini lembra que o fim de semana na Itália foi dos mais tensos. Começou com o grave acidente de Rubens Barrichello na sexta-feira. O brasileiro correu sério risco de morte. No sábado, Ratzenberger morreu após outro acidente na pista, na véspera da tragédia envolvendo Senna.
“Aquele Grande Prêmio foi o acontecimento mais nervoso e o mais tenso que eu jamais presenciei em toda a minha cobertura da Fórmula 1. Era um ambiente altamente nervoso e de alta insegurança”, recorda Cabrini, que aponta também os desconfortos que o tricampeão mundial revelava naquele momento.
“A cabeça do Senna estava cheia de dúvidas. Ele estava sob pressão porque era a terceira corrida do ano. Nas duas primeiras, tinha sido o pole position, mas não tinha completado a prova por problemas no carro. Então se sentia pressionado a vencer. Não bastasse isso tinha na sua cola um jovem talentoso, chamado Michael Schumacher, que vinha logo atrás dele. Depois descobriram que o carro dele burlava o regulamento.”
Livio Oricchio lembra do momento da batida com detalhes ainda fortes em sua memória. “Ayrton começou a Curva Tamburello com as rodas viradas para a esquerda. De repente, viraram para a frente e seguiram trajetória reta até bater no muro. No dia seguinte, eu estive no local do acidente e existiam marcas de freadas. O impacto foi a pouco menos de 200 km/h, apesar de o carro ter saído da pista a 300 km/h.”
Ambos os jornalistas evitam apontar culpados pelo acidente. “A Fórmula 1 é uma ciência experimental. O carro é um protótipo, não é um carro de série onde se fazem mil testes e colocam um coeficiente de segurança. O piloto sabe disso, ele corre riscos por isso. Todo mundo tenta evitar, mas às vezes acontece”, diz Livio.
“Muitos acidentes acontecem por razões semelhantes, mas não têm a mesma consequência. Aí você não fica sabendo. No acidente do Senna, foi a ruptura errada (da coluna de direção), na curva errada e com uma série de fatores. O braço da suspensão se espatifou contra o muro e se tornou uma lança, que entra e sai do capacete na altura da viseira”, recorda Cabrini.
INFLUÊNCIA NAS NOVAS GERAÇÕES
Livio Oricchio lembra de quando ouviu falar de Senna pela primeira vez. “Em 1978 li uma matéria na revista Quatro Rodas sobre um ‘excepcional piloto de kart’. Eu curtia automobilismo, mas não era jornalista. Um sábado à tarde fui no Kartódromo de Interlagos para ver uma etapa do Campeonato Paulista. Vi, da arquibancada, o Ayrton pela primeira vez. Ele estava de macacão preto, era bem magrinho.”
“O que me chamou a atenção foi o estilo de pilotagem bastante particular. Ele sabia usar muito corpo para fazer a curva e dominava esta técnica como poucos. Levava muita velocidade para dentro da curva, freava dentro da curva, ele tinha controle excepcional”, recorda.
Com a experiência de ter acompanhando gerações diferentes de pilotos in loco, o jornalista vê o estilo de Senna se repetir na F-1 atual. “Em 1991 no meu primeiro GP de Mônaco, vi o Ayrton usar a mesma técnica do kart, deixando a traseira escapar. Em 2007, Lewis Hamilton estreou em Montecarlo (GP de Mônaco) e foi incrível a semelhança no estilo de conduzir o automóvel.”
Para o jornalista, o legado de Senna vai além do esporte. “É preciso entender o ‘pacote Ayrton Senna’. Ele passou uma mensagem filosófica na qual dizia que só chegou onde chegou muito em função da resiliência, dedicação e extrema paixão pelo que fazia. Nas entrevistas, costumava falar que, para chegar ao ponto de destaque, em qualquer área, era preciso seguir uma série de procedimentos padrão para fazer sucesso. Extrema dedicação, jamais desistir, ter a capacidade de conviver em um meio que faz questão de fazer com que você se sinta pequeno e enfrentar uma segregação a quem não era europeu, coisa que há 35 anos era muito mais intenso do que na atualidade.”