Juristas, economistas, historiadores e uma constituição esquecida

22/jun 08:00
Por Gastão Reis

Meu artigo anterior, “O Grito de São Paulo por uma Nova Constituição”, publicado, em 8/6/2024, nos jornais O Dia, Diário de Petrópolis e Tribuna de Petrópolis, não esgotou minha contribuição ao debate em torno da questão da necessidade de uma nova constituição para o Brasil. Não foi possível, naquele curto espaço de duas laudas, expor melhor minha visão sobre o assunto.

A matéria publicada no EU& do jornal Valor, de 14/06/2024, sobre “Mentes que moldaram a economia brasileira”, cita o escritor Ivan Lessa (1935-2012) que nos falava sobre a “teimosia dos brasileiros em esquecer, a cada 15 anos, o que aconteceu nos 15 anos anteriores”. Imagine, caro(a) leitor(a), o meu caso em relembrar o que ocorreu há dois séculos. Mais especificamente, as virtudes político-institucionais da Carta de 1824.

Keynes quando se referiu à caixa de ferramentas de um bom economista ressaltou a boa formação em teoria econômica sem esquecer de outros ramos do conhecimento como sociologia, psicologia, história, estatística e matemática, que muito o ajudariam a captar a realidade como ela, de fato, é. Este conselho não faria mal a juristas e historiadores, embora estes últimos sempre estejam mais próximos da realidade por irem às fontes. Mas foquemos nos nossos três atores: o jurista, o economista e o historiador com suas virtudes e falhas.     

Uma conhecida piada nos conta que um economista, um advogado e um engenheiro estavam perdidos num deserto, sedentos e famintos, e se deparam com uma lata de sardinha. O advogado se antecipou, afirmando que era preciso antes saber quem era o dono dela. O engenheiro, sempre prático, bolou logo um modo abrir a lata. Brilhantemente, o economista, minha tribo, deu a solução imediata: “Vamos supor que a lata está aberta.”         

Entre os debatedores convidados para as três mesas não estava o Dr. José Anchieta da Silva. A contribuição dele, no volume 1 dos debates sobre a proposta de uma nova constituição do Prof. Modesto Carvalhosa, nos diz em seu parágrafo de abertura o seguinte: “O Brasil está doente. Os poderes constituídos estão em aberta desarmonia, uns em relação aos outros e todos em relação aos legítimos interesses da gente brasileira”. Raio X de um regime político falido e de economia capenga há quase meio século.

Dr. Silva, em seu texto, aparentemente, foi o único que se referiu à constituição do Império de 1824, outorgada por D. Pedro I. Sua breve abordagem foi na linha do excesso de poder concedido ao Imperador. Não men-cionou, entretanto, ter sido a que mais durou em nossa História como também ocorreu com a Carta de 1826, lá em Portugal, baseada na nossa de 1824.

Causou-me estranheza que as razões dessa longevidade não terem sido mencionadas no evento e no próprio texto do Dr. Silva. Este ponto crítico é fundamental para entender os descaminhos percorridos por nossa malfadada experiência republicana em contraste com o vigor do Império. No entanto, quando menciona as virtudes da Carta republicana de 1891, ele afirma que ela “neutralizou franquias constitucionais com favorecimento de indivíduos e grupos, marca do regime imperial”.   

Neste ponto específico, o Dr. Silva pisa em falso nos dados históricos concretos do início da república. O historiador Sergio Buarque de Hollanda reconhece que o país em que os fazendeiros passaram a mandar e desmandar  nasceu com a república. Não foi durante o Império.

Dentre outros, o cientista político Paulo Kramer nos informa que Deodoro concedeu generosos aumentos aos militares. E que o primeiro orçamento da república fechou com déficit de 80 mil contos de réis. Em seguida, veio o Encilhamento com Ruy Barbosa e a febre especulativa com empresas de papel e estradas de ferro e companhias de navegação que não existiam. Na verdade, foi pela má gestão na república que houve o “favorecimento de indivíduos e grupos” de especuladores que deram enormes prejuízos ao País.

Quando comparamos a proposta de uma nova constituição da lavra do Prof. Modesto Carvalhosa, a quem respeito e considero, me pareceu estranha sua preferência pelo presidencialismo e o fato de ser contrário à reeleição para cargos executivos. Foi esquecido o excepcionalismo brasileiro de ter tido um regime parlamentarista até 1889, invejado por nossos vizinhos latino-america-nos, que funcionou bem em termos institucionais, com respeito ao dinheiro público, controle do andar de cima e garantidor do crescimento sustentado.

Em linhas gerais, a Carta de 1824 passaria, ainda hoje, nos testes do que seria uma constituição que não mistura interesses de grupos econômicos e fações políticas, como na proposta do Prof. Carvalhosa, antípoda da Carta de 1988. O fato de ter passado em brancas nuvens as virtudes da constituição de 1824 reflete uma lacuna histórica arquitetada e bem-sucedida de desconstru-ção de nossa memória nacional pelo dito regime republicano.

Três pontos resumem as virtudes perenes da Carta de 1824. O artigo 179 é enfático: “A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros que têm por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”. O § 4º é cristalino: “Todos podem comunicar seus pensamentos por palavras, escritos e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura (…). O mesmo art. 179, em seu § 30, nos garantia o seguinte: “Todo cidadão poderá apresentar, por escrito, ao poder legislativo e ao executivo, reclamações, queixas ou petições, e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente auto-ridade a efetiva responsabilidade dos infratores”. Era o poder sob rédea curta.

Este sólido tripé jurídico ainda era respaldado na prática pela cobrança semanal nas reuniões do ministério das atividades e responsabilidades dos ministros pelo Imperador. E ainda pelas audiências semanais, aos sábados, a qualquer pessoa que quisesse falar com ele sem ter que marcar audiência prévia. Pouco, ou nada disso, sobreviveu na república desde 1889.

Faço minhas as palavras do historiador negro americano Lonnie Bunch, atual presidente do Instituto Smithsonian, em entrevista ao jornal O Globo (19/6/2024): “Se aprende muito sobre um país pelo que é lembrado, mas ainda mais pelo que é esquecido”. 

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