Laura de Mello e Souza evoca o mito edênico em Jardim das Hespérides
Foi num historiador mineiro do começo do século passado que a historiadora Laura de Mello e Souza encontrou a sugestão para o belo título de seu novo livro, O Jardim das Hespérides (Companhia das Letras, 2023). “Era o país das serranias impenetráveis, dos rios enormes, das feras e dos monstros”, escreveu o hoje desconhecido Diogo de Vasconcelos, referindo-se ao espaço mineiro antes da colonização europeia, acrescentando uma referência à mitologia grega: “Uma espécie das Hespéridas antigas guardadas por dragões”. A referência ao mito das Hespérides, mais do que erudição gratuita, revela uma aguda leitura da sedimentação histórica das visões da natureza em Minas.
Consta de fontes gregas diversas que houvera, provavelmente no extremo Oeste do mundo conhecido, um bosque habitado por lindas ninfas – as Hespérides, “filhas da noite”, conforme a etimologia e a genealogia fornecidas por Hesíodo, se bem que outras fontes relatem origens diversas – que cuidavam de um pomar de maçãs douradas. Para proteger da cobiça dos homens (e das ninfas, talvez) semelhante prodígio, rondavam o jardim ferozes dragões. Isso, até o dia em que Hércules, num de seus últimos trabalhos, matara os dragões e colhera os pomos, assim incorporando o fabuloso jardim ao mundo desencantado dos homens.
O símile mítico é bem apropriado para pensar a história de Minas, pois reúne diversas formas históricas de relacionamento do humano com o meio ambiente. Zona desconhecida e indecifrável que atrai e repele por sua natureza ambivalente, “sertão” onde “tudo são dúvidas”, conforme a expressão de um administrador colonial setecentista, vista alternativamente como edênica – bosque deleitoso de belas ninfas a encerrar copiosos tesouros – ou trágica – infestada de feras mortíferas, hostil também pela topografia angulosa das serras que a circundam, cobertas por escuras florestas.
Fim ameaçador do mundo conhecido, princípio de um mundo novo, o da expansão dos domínios da Coroa e da cristandade, no qual a natureza antes ameaçadora se converteria em ordenado jardim. Esse novo quadro não deixará de conviver, de forma tensa, com os vestígios do passado. É o que mostram os belos mapas de José Joaquim da Rocha, nos quais o cartógrafo é retratado à margem do espaço representado, impassível, ao lado de um indígena que o ameaça com a mira de seu arco.
HOSTIL. Especialmente fascinante entre as diversas figurações da natureza mineira analisadas por Laura de Mello e Souza é aquela plasmada pela sensibilidade tragico-melancólica de Cláudio Manuel da Costa, que se autoestiliza como “alma terna” nascida em meio a duros penhascos: “Que entre penhas tão duras se criara/Uma alma terna, um peito sem dureza!”, exclama, apenas para concluir que são as penhas que têm a temer, pois que o Amor do poeta há de se apurar onde encontra maior resistência. A mesma paisagem hostil parecerá menos sujeita à redenção pelo amor no impressionante Soneto VIII de Cláudio, em que o infortúnio amoroso tinge a paisagem toda de desespero: “Tudo cheio de horror se manifesta/Rio, montanha, troncos, e penedos/Que de amor nos suavíssimos enredos/Foi cena alegre, e urna é já funesta”. Tal intensidade na descrição da paisagem deriva, em grande medida, da adesão do poeta às convenções literárias tradicionais de sua formação, que viam na montanha um espaço adverso à civilização. Com finura crítica característica, porém, a autora observa: quando o poeta vincula, obsessivamente, a pedra e o relevo acidentado aos traços biográficos individuais, estamos diante de uma nítida “inserção da paisagem regional num universo afetivo”.
Esses exemplos do que poderíamos chamar um “discurso mineiro” sobre a paisagem dão apenas uma pálida ideia do refinamento com que Laura de Mello e Souza trilha os arquivos e bibliotecas de Minas mostrando em detalhes como se deu a lenta acomodação da mentalidade dos colonizadores ao espaço conquistado. Discurso que é instituído, como se sabe, mediante a exclusão violenta dos povos originários, os “gentios bravos” cuja derrocada o épico Vila Rica, de Cláudio Manuel, celebrará como triunfo da civilização – de forma bem edulcorada, como mostra a algo fantasiosa menção à “arte de vencer sem armas” do “ínclito Noronha” (capitão-geral da colônia), enquanto o indígena ficcional exultará a própria submissão à nova ordem (“Ah! Que de feras nos tornamos homens!”). No princípio, a imaginação febril dos primeiros entrantes paulistas, às vezes meninos, dava margem à identificação incorreta de pedras (é famoso o caso das “esmeraldas” de Fernão Dias Pais, que se revelariam – “verde engano”, escreverá Drummond – meras turmalinas), ou à descrição colorida de acidentes geográficos como lagoas mágicas de “águas leves”, habitadas por monstros, além de “capelas” naturais. Esses insólitos templos encorajavam as esperanças providenciais de homens que liam o mundo como um livro repleto de correspondências com a Bíblia, identificando nos rudes sertões do Rio São Francisco os sinais de um futuro dadivoso.
MITO. Este chegaria, é claro, na forma do ciclo minerador. É já na sua decadência que surgirá pela primeira vez aquilo que Antonio Candido denominaria um “sistema” literário na região, de modo a permitir o florescimento das melhores expressões do discurso letrado colonial sobre a natureza mineira. Nessa altura, a atualização tardia da visão mítico-edênica de uma natureza pródiga alimentará o sentimento local que, não raro, como no caso de alguns dos poetas árcades, se tornará sedicioso, com a insurreição frustrada de 1789. São esses apenas alguns casos do fascinante enredamento histórico entre formas de política, sensibilidade, expressão literária e trato com a natureza destramente iluminadas pelo olhar experimentado e afiado de Laura de Mello e Souza. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.