Liberalismo na dose certa

14/set 08:00
Por Gastão Reis

O recente livro de Francis Fukuyama, “Liberalism and its discontents” (“Liberalismo e seus insatisfeitos” em tradução livre, sem versão em português) merece registro por sua clareza de exposição. O autor ficou famoso por um outro livro, “O Fim da História”, em que ele afirmava que a difusão das democracias liberais e do livre mercado apontavam para o fim da evolução sociocultural da humanidade. Tal assertiva deu margem a inúmeras controvérsias. Mas, na verdade, os fatos nos dão conta – até com alertas de ex-presidentes americanos – das fragilidades reais da democracia.

Mas vamos a este seu último livro, datado de 2022.

Fukuyama, de início, enumera três razões para a existência das sociedades liberais. A primeira é a regulação da violência, evitando suas disfuncionalida-des e aberrações. A segunda é sua capacidade de proteger a dignidade humana e sua autonomia. A terceira é ter a capacidade de promover o crescimento econômico com base no direito à propriedade.

Este tripé realmente funcionou ao longo do tempo. Os casos da ex-URSS e da China quando foram na direção oposta, tendo depois da dar meia volta, ilustra bem o poder das bases do liberalismo. Logo em seguida, Fukuyama ressaltar a importância do método científico, como sendo o melhor caminho para entender e manipular o mundo externo. O livre mercado de ideias, onde a censura não tem vez, permite que as más ideias sejam descartadas através de deliberações democráticas e por evidência estatística.

O autor recorre ao filósofo Locke que dizia que o próprio Estado deveria ser limitado pelo consentimento dos governados. A tolerância era assim um princípio básico a ser preservado. O liberalismo tem a virtude baixar a temperatura da política, que pode ser excessiva. A terceira e maior justificativa para o liberalismo, vale enfatizar, é sua visível conexão com o crescimento econômico e a modernização resultante da criatividade, que traz em seu bojo. Ele cita como exemplo de ineficiência a adoção do princípio “de bens espanhóis somente em portos espanhóis conduzidos por navios espanhóis”.     

Fukuyama nos informa ainda que o liberalismo, motor do crescimento econômico, desde 1800 até hoje, se expandiu 3000%, ou seja, multiplicou a riqueza e a renda 30 vezes. Para ele, o risco acontece quando a doutrina se torna doutrinária. Em suas próprias palavras, “comprar e vender em liberdade sem interferência do Estado, moto do liberalismo, quando levado a extremos, se transformou em “neoliberalismo” no século XX, e levou a desigualdades grotescas”.

Fukuyama nos diz que, por volta de 1970, houve uma espécie de rebelião contra o excessivo controle do Estado sobre a economia, período de que me recordo bem quando estudava na Universidade da Pensilvânia (1977-1980). Foram liberando os mercados das muitas amarras existentes, dentre eles o mercado da aviação civil entre vários outros.

E foi então que Fukuyama me fez lembrar do nosso famoso economista Celso Furtado ao afirmar que a tropa a favor da abertura total se esqueceu que mercados só funcionam bem quando regulados pelo Estado através de siste-mas legais capazes de definir regras relativas à transparência, a contratos, propriedade, e assemelhados. Vai além, e deixa claro que instituições finan-ceiras se comportam de modo muito diferente das empresas na economia real.

Mas reconhece que programas sociais criaram enormes bur(r)ocracias. Sindicatos do setor público se tornaram crescentemente poderosos. A luta pela igualdade no caso brasileiro passa por estreitar as diferenças salariais entre o setor privado e o público, este muito acima daquele. Situação bem diferente do resto do mundo em que os salários são semelhantes para as mesmas funções. 

Fukuyama menciona os extremos do liberalismo, e cita o exemplo dos famintos da Irlanda, no final dos anos de 1840, em que a Inglaterra preferiu manter a exportação de grãos ao invés de destinar parte deles para acudir a  Irlanda, país que perdeu um terço de sua população por falta de comida. Ele ressalta, com razão, que a presença do Estado é plenamente justificável para dar apoio às pessoas quando estão submetidas a circunstâncias adversas muito além de seu controle.           

Ao citar Douglas North, Nobel de Economia, que define instituições como sendo a força que estabelece “a estrutura de incentivos das sociedades e, especificamente, das economias”, Fukuyama enfatiza que o governo é necessário para suprir o que o mercado em si não consegue. Antes de North, as teorias econômicas ortodoxas de crescimento não levavam em conta a política, a cultura e qualquer outro fator não-econômico.

A economista Deirdre McCloskey, por sua vez, afirma que North não teria demonstrado que os direitos de propriedade foram a chave para o crescimento europeu após o século XVII em relação a outros fatores como os valores sociais burgueses e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do método científico na compreensão do mundo industrial e suas aplicações práticas.

O livro de Fukuyama trata de vários outros temas importantes impossíveis de serem tratados num artigo de duas laudas. Mas ele faz algumas ressalvas em desfavor do liberalismo como, por exemplo, nem sempre levar em conta fatores culturais específicos. Ou mesmo fazer vista grossa para algum tipo de proteção social em situações em que as pessoas são submetidas a circunstâncias fora de seu controle.

Meu colega colunista, Pe. Anderson Alves, no prefácio do livro “Educar para as Virtudes e o Bem Comum”, onde diversos autores colaboram sobre o tema-título, vai fundo sobre o liberalismo moderno. Ele afirma que “pode ser definido como uma forma de ‘individualismo possessivo’, que inverte a perspectiva aristotélica e do primeiro Humanismo, afirmando que o ser humano é fundamentalmente individualista e utilitário”.

Mas também é fato que Fukuyama busca corrigir tal disfunção social do neoliberalismo. Por isso mesmo, merece ser lido.

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