Cine Muda: Limite, Mario Peixoto

19/02/2021 08:00
Por Maitêus*

Aproveitando que na semana passada a coluna estreou seu nome, hoje analiso aqui uma muda de pau-brasil, o único filme finalizado de Mario Peixoto, Limite, que carrega em si as origens do cinema brasileiro e foi considerado em 2015 pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) o melhor filme brasileiro de todos os tempos.

Antes de adentrar no universo diegético do filme, é necessário falar sobre o seu suporte físico. Durante a maior parte da história do cinema os filmes eram registrados num meio material muito vulnerável chamado película, o mesmo material do filme das antigas câmeras analógicas que tinham que ser revelados. E não diferente dessas, com muita frequência, esse material era danificado e tinha seu conteúdo perdido. Portanto, para evitar essa perda, sempre foram e ainda são necessárias técnicas muito precisas de conservação para fazer sua manutenção ao longo do tempo. Enquanto não vimos surgir a digitalização do cinema,  além de conservá-los muito bem, fazer cópias de seus fotogramas era a maneira mais efetiva de os manter seguros. Alguns filmes, entretanto, inclusive o Metropolis (de novo ele), estiveram perdidos durante muito tempo, guardados em algum acervo pessoal, ou disponíveis em cópias muito danificadas. Nesses casos, por vezes, o filme torna-se impossível de ser reproduzido, de modo que a experiência do espectador sai muito prejudicada. Tanto Metrópolis quanto Limite precisaram passaram por processos de restauração nos últimos 15 anos para serem novamente disponibilizados ao público, e ainda assim cada um deles tem uma cena faltando, que foi substituída por um intertítulo explicando-as. Longe de me afastar do filme, quando me deparo com um intertítulo anunciando a ausência de uma cena eu me sinto mais consciente da história daquele filme, dos lugares pelos quais passou, das pessoas que o guardaram voluntariamente e me vem à mente ainda a importância do trabalho de conservação dos filmes que as cinematecas e outras instituições fazem ao redor do mundo quando estes filmes são finalmente localizados. Lamentar a ausência de um trecho do filme deve sempre vir acompanhado da gratidão pela permanência de todo o resto do filme, e da consciência de que quem ataca nossas cinematecas está atacando nossa história e nossas riquezas culturais, deve ser considerado um criminoso.

É preciso alertar que Limite não é um filme fácil. Quase poderíamos caracterizá-lo como experimental se não fosse o fato dos filmes experimentais na Europa e Estados Unidos terem surgido só alguns anos mais adiante. Grande parte do mérito de Limite está ancorado nas suas ousadias narrativa e estilística e não tanto em uma história excepcional.

Começo, portanto, pela ousadia precoce na forma de se contar a história do filme. Narrativamente o filme quebra com as regras tradicionais da literatura e consequentemente do cinema ao contar a história por meio de flashbacks, ou seja, rompendo com a linearidade. A história do filme se inicia em um barco a remo no meio do mar, três tripulantes o ocupam numa postura de distanciamento como se estivessem sozinhos. Depois de nos mostrar esses três personagens, o filme passa a contar a história  de cada um deles, iniciando pela história de uma mulher foragida da prisão. Muito do que ocorre no filme é sugestivo, por vezes não há continuidade entre uma cena e a seguinte, em outro momento parece haver uma continuidade que não se sustenta. É o caso nesta primeira história, de uma fugitiva pulamos para uma costureira, como num sonho, não fica explícito se costureira e fugitiva são a mesma pessoa, se a costureira é a mulher dormindo no barco ou se é ainda uma terceira mulher não apresentada. Ocorre algo parecido na cena em que nos é contada a história da segunda mulher. O filme pula de uma cena do barco à deriva para uma outra, de um barco visto de baixo, chegando numa costa. Essa montagem nos leva a crer que o barco se deslocou finalmente para algum lugar, mas quem está se movendo mesmo é a lembrança dos tripulantes. A história da segunda mulher se inicia com ela indo comprar peixes com pescadores e em seguida chegando em casa. Ao chegar se depara com seu marido dormindo na escada, aparentemente amargurada ela abandona o cesto com peixes e consequentemente o marido. Por fim, a história do rapaz com os remos em punho é contada, trágica como as outras. O vemos com uma mulher em um passeio em meio a natureza, e nesse ponto o filme registra e faz questão de nos mostrar a natureza. Em seguida o rapaz vai a um cemitério, onde encontra com um homem, nos deparamos, então, com o primeiro diálogo escrito do filme, onde duas cartelas são inseridas, quando o homem do barco descobre que sua amante é morphética (tem hanseníase), e essa informação parece desesperar o rapaz e é o estopim para seu processo de autodegradação.

A bem da verdade não nos é explicado porque aqueles sujeitos foram parar naquele barco, eles parecem nem se conhecer previamente e por isso contam suas histórias uns para os outros. O que Mario Peixoto parece estar propondo é uma metáfora, percebemos isso ao observar que nos flashbacks – representante da memória, portanto produto da nossa mente, naturalmente menos confiável do que a realidade – tudo se passa em terra firme, com recorrência vemos árvores, construções e muitas caminhadas, elementos que evocam segurança, ao passo que, nas cenas dentro do barco, apesar de se passarem no presente do filme, só vemos a água e sua volatilidade. Mario inverte a equação, dá a mente ares de concretude enquanto a realidade é jogada para o campo do onírico.

A estética do filme é tão transgressora para os padrões artísticos da época quanto a sua forma de narrar. Ao longo do filme nos deparamos com planos e movimentos de câmera muito incomuns para o que estava estabelecido até então como litúrgico no fazer cinema, por vezes são movimentos de câmera nada informativos. A câmera de Edgar Brazil, diretor de fotografia do filme, parece entrar em estado de transe nos momentos que culminam com o desespero dos personagens, de modo que começa a se movimentar, girar, aproximar-se e repetir os planos como se estivesse numa dança, num movimento que só se justifica pelo êxtase, que destoa completamente do rotineiro e tradicional movimento de acompanhar com os olhos. Aqui parece que a câmera não é apenas o nosso olho, mas também o nosso corpo. É talvez nesse ponto que o filme transmita o que há, em si mesmo, de mais brasileiro, nesse movimento próprio das nossas festas e religiosidades e que, pessoalmente, não me recordo de ter visto em outros cinemas da época, caracterize este filme como criador de uma estética legitimamente brasileira.

O filme se encerra com belíssimas cenas do mar revolto em um violento movimento dançante. A natureza, que ao longo do filme foi retratada tão pacífica e permanente, agora se movimenta de forma voraz, acabando por naufragar de vez o barco que já apresentava infiltrações. Aqui a tendência natural do universo à entropia parece ser a mensagem final do filme. Pessimista? Talvez, mas é também necessário, na medida em que nos leva a refletir sobre os motivos de estarmos aqui, quando percebemos que a natureza, o planeta e o universo permanecem, independente da nossa vontade ou ação. Coloca-nos no lugar, nos dimensiona diante da grandeza de tudo o que existe.

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*Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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