Livro de Bento Araujo reúne 100 discos saídos dos porões do Brasil

26/03/2021 08:00
Por Julio Maria / Estadão

A catalogação de álbuns heroicos gravados em geral na obscuridade das cenas invisíveis do País feita pelo jornalista, músico e pesquisador Bento Araujo rendeu mais um livro da série Lindo Sonho Delirante. São mais 100 álbuns, estes registrados entre 1986 e 2000, que merecem o subtítulo na capa de “discos corajosos” por subverterem o mundo que habitavam por algumas vezes de forma revolucionária e, em outras, sem a necessidade de apontarem para lugar algum. Era simplesmente a sonoridade na qual seus criadores acreditavam. E ponto.

Alguns transbordaram territórios de origens e voaram mais alto, como a psicodelia atualizada do primeiro álbum do Violeta de Outono, o explosivo dos manguezais Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi; o assombroso encontro entre Aldir Blanc e Guinga em Delírio Carioca e o primeiro e desestabilizador álbum do Mulheres Negras, Música e Ciência, antecipando o que a internet faria existir com o nome de “música do mundo”. Outros seguem a ser descobertos, reouvidos e reavaliados, fazendo valer em dobro o projeto de Bento Araujo. Obras nordestinas pós-armoriais como Estrada, da dupla Zeto e Bia Marinho, Centauros e Canudos, do cearense Pingo, e, por que não, Fome Dá Dor de Cabeça, do Cascabulho. Mas também o clássico do rock livre de São Paulo Corredor Polonês, do Patife Band, e a bela reunião revisionista e ao mesmo tempo visionária feita em Nina Maika, de Edson Natale.

Existe um “efeito catálogo” no livro de Bento, uma força baseada no contexto dos “álbuns escolhidos” que, mesmo sendo apenas a escolha do autor, faz inferir sutilmente sobre cada um, ainda aos que não disseram tanto nos anos de seus lançamentos, uma avaliação legitimada pelo tempo. Nem todos criaram revoluções ou as reforçaram, e muitos seguirão sendo do tamanho que eram, mas a coleção curatorial pede, no mínimo, uma audição mais cuidadosa de cada um deles. Há textos curtos ao lado de cada álbum que trazem suas respectivas traduções em inglês com um pouco de ficha técnica e histórias de bastidores.

Uma introdução mais aprofundada permite a Bento amarrar conceitos e propor uma leitura interessante sobre tantos estilhaços surgidos apenas aparentemente ao acaso. Muitos dos que viveram na segunda metade dos anos 80 podem não saber, mas conseguiram comprar discos de rock nacional graças às benesses efêmeras do Plano Cruzado de 1986. Muitos que ouviram a banda Sexo Explícito, do guitarrista John Ulhôa, podem não saber, mas estavam ouvindo um dos grupos que não viam o Clube da Esquina como referência sacralizada, mas um fóssil a ser suprimido. E quem ouviu Chico Science, mundo livre s/a e Nação Zumbi certamente não supunha que eles não pediam bênção alguma a Alceu Valença e Zé Ramalho.

“O guitarrista Paulo Rafael disse em uma de nossas entrevistas que os caras no Nordeste queriam chegar mesmo com tudo, se afirmando, como os punks fizeram”, conta Bento. De alguma forma, os clubes das esquinas de Minas, Pernambuco, da Bahia ou qualquer lugar saturavam uma geração que passou a vê-los não com orgulho, mas como “parte do sistema”.

As reflexões de Bento a respeito de sua organização de discos lançados corajosamente nos porões de um mercado estabelecido pelo rock brasileiro no início dos anos 80 mostram como o underground não foi apenas um lugar de reações verbais, mas também de contrarrevoluções estéticas. A força do rock que chegava dos ingleses The Police, The Jam, The Smiths, The Who e Joy Division entrou nas veias de bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Ira! e, um pouco mais tarde, do RPM. O resultado social desta segunda onda de apropriação cultural em massa – a primeira havia sido com a Jovem Guarda nos três anos seguintes a 1965 – foi uma nova polarização entre o rock e tudo o que lembrasse uma brasilidade a ser descartada pelos jovens. Ou seja, e lembrando o dia da Passeata Contra a Guitarra Elétrica, em 1967, liderada por Elis Regina de braços dados com Gilberto Gil e Edu Lobo, havia rock nacional de um lado e, do outro, samba, choro, maracatu e baião. Gostar de um dos dois grupos eliminava qualquer chance de ser aceito pelo outro.

Mas os porões responderam de outra forma. O grupo Akira S & As Garotas que Erraram fizeram à Revista Bizz uma bombástica declaração de paz: “Quem repudia o samba está atrasado… O samba é um negócio forte, qual o problema em dar uma incorporada?”, disse Akira S no texto de abertura, definido por Bento como um “especialista nas programações eletrônicas”. A coletânea Não São Paulo, produzida pelo selo Baratos Afins, de um histórico guerreiro do rock underground da Galeria do Rock de São Paulo, Luiz Calanca, teve uma reação na mesma direção. Uma das oito faixas do LP era da banda Chance e havia sido batizada sob o herege título de Samba do Morro, uma aproximação muito equilibrada entre rock, eletrônica, bossa-nova e samba, algo que ninguém do rock do mainstream ousaria fazer. “Não tenho dúvidas de que fomos os primeiros”, diz o líder do grupo, José Augusto Lemos, em outra entrevista ao autor.

O rock e as brasilidades do “terceiro mundo profundo”, o mesmo que ajudou a criar a MPB a partir dos festivais da canção iniciados em 1964, vão viver uma reaproximação vibrante na década seguinte. Antes separados por muros, e até os pernambucanos subiram o deles nos anos 1970 para manter suas tropas regidas por Ariano Suassuna, mentor das ideias puristas do incontaminável Movimento Armorial, os tambores do maracatu se uniram às guitarras para chegar ao mangue beat. Não era a descoberta da roda. Alceu Valença com Zé Ramalho e Paulo Rafael já faziam isso de forma menos coletiva e organizada havia duas décadas, um discurso musical que Chico Science radicalizou e espalhou pelo País.

A obra de Bento Araujo traz exemplares curiosos de duas fases nordestinas. Artistas como Pingo, que tem seu testemunho imortalizado no LP Centauros e Canudos, e o Trio Romançal, que lança seu álbum em 1987, são espécimes raras de um segundo instante do Movimento Armorial. Já o primeiro disco do Mestre Ambrósio, de 1996, e o primeiro do Cascabulho, de 1998, pertencem à segunda geração do mangue beat. “Acho mesmo que Siba e Silvério Pessoa (respectivos integrantes de cada grupo) se firmaram como expoentes desse mangue beat mais ligado às raízes e menos urbanizado”, diz Bento.

Ao misturar todo o caldo, com os filhos do mangue eletrificados unidos aos acústicos e aos radicalmente presos às tradições mouras e africanas, o que se viu por aqueles anos atravessados entre a segunda metade dos tempos de 1980 e a primeira dos anos de 1990 foi um fervor de afirmação cultural geográfica que o Brasil jamais viu, contrariando mesmo o filho da terra Alceu Valença, que chegou a duvidar da herança de seu Pernambuco. Desde então, o único povo que usa camisetas brancas com a bandeira de seu Estado desenhada no peito, ainda hoje, é o povo pernambucano.

Talvez o próprio Bento seja resultado da “Tropicália que ninguém viu”, a declaração de liberdade dada pelos roqueiros invisíveis ressurgidos em sua obra. Se não fosse por eles, esse jornalista e pesquisador amante das bandas obscuras de rock que teve seu próprio grupo poderia estar preso à polarização que a música brasileira, e só a música brasileira, não aceitou abrigar. A presença no livro de álbuns como A Terra e o Espaço Aberto, de Benjamin Taubkin, Olho de Peixe, de Lenine e Marcos Suzano, e Um Trovador Eletrônico, de Jorge Mello, prova a vitória dessa liberdade.

LINDO SONHO DELIRANTE – VOLUME 3

Autor: Bento Araujo

Editora: Poeira Press

(232 págs., R$ 120).

Informações pelo site www.poeirazine.com.br

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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