Livro de Merval se destaca por sua voz pessoal e particular, além da erudição

21/11/2021 09:00
Por José Nêumanne / Estadão

Escreveu certo poeta mineiro com infinita argúcia e provisória sabedoria de jardineiro da última flor inculta e bela do Lácio, que “lutar com as palavras é a luta mais vã”. Drummond nunca se aventurou ao chá das 5 na Academia Brasileira de Letras (ABL). Já seu leitor Merval Pereira se dedica ao desafio de dar à palavra profana a natureza veneranda no prelo de Gutenberg. Desafios da Democracia (2003-2020) é mais uma refrega dessa luta inspirada na leitura correta do poema O Lutador, em que a preposição com pressupõe arma, instrumento, aliança, não contra, do outro lado do ringue.

Não é um combate inédito. Joaquim Maria Machado de Assis, mulato dos morros infectos do Rio de Janeiro pré-Pereira Passos, foi um pioneiro nessa tarefa de registrar o descartável para torná-lo eterno nas mais belas crônicas da língua de Camões. Joaquim Nabuco, vulgo Quincas, o Belo, como Machado fundador da ABL, também se aventurou nessas batalhas em que o chumbo do canhão é substituído pelo das velhas linotipos pré-offset na virada do século 19 para o 20. Na profissão de Merval, repórter e comentarista, há nomes ilustres das letras que o precedem. O estilo indelével de Murilo Melo Filho, nas páginas da Manchete da minha infância, é perpetuado em brochuras impressas. Ninguém está autorizado a reclamar da natureza volátil dos comentários atuais para a época de suas edições em veículos de imprensa e lidos com prazer em qualquer momento das lavras de Carlos Castelo Branco, Fernando Pedreira, Elio Gaspari e Villas-Boas Corrêa.

As incursões do articulista de O Globo, comentarista da GloboNews e membro da ABL no mundo do livro se destacam por sua voz pessoal e particular, fundada num convívio permanente em redações, bibliotecas e tertúlias acadêmicas.

PRÊMIO ESSO. Forjada em estilo escorreito e de profunda cultura, é reconhecida como singular em nossa língua. Numa passagem por Brasília, em 1979, escreveu, com André Gustavo Stumpf, a série de reportagens A Segunda Guerra – Sucessão de Geisel, publicada no Jornal de Brasília, e com a qual ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo. A lógica da passagem da reportagem fugaz para o testemunho histórico, aplicada neste lançamento, teve sua pedra fundamental no volume de 782 páginas de O Lulismo no Poder, editado em 2010 pela Record. A teia sutil de acontecimentos aparentemente provisórios é capaz de sustentar o peso de teorias permanentes apoiando-se em seus fios finos conquanto resistentes Desafios da Democracia (2003- 2020), com apresentação de Celso Lafer, texto de quarta capa de Nélida Piñon e prefácio de Fernando Gabeira, enfrenta a lógica temporal de sucessões. Leitor constante de sua produção periódica de textos de muito fôlego, tomo agora conhecimento em esforço despendido e tempo gasto na produção dos longos artigos propriamente ditos na seleção das frases fadadas ao oblívio, mas que se eternizam na encadernação. Não há comentário que substitua a descrição do escritor em tal mister: “Queria selecionar um pouco do que escrevi sobre questões que dizem respeito à cultura, aos valores democráticos, à cobertura das eleições americanas, ao futebol como expressão do diálogo entre culturas e países, ao debate sobre o papel da mídia e da tecnologia no mundo moderno, e a temas urgentes da pauta contemporânea sobre os quais a ABL tem procurado refletir com a colaboração de importantes pensadores do Brasil e do exterior”, confessa Merval na Nota do Autor, ao descrever a pesquisa feita nos intervalos da labuta diária da coluna no jornal, de programas no rádio e na televisão e de palestras. O que era flagrante em prosa impressa nas duas anteriores, uma citada aqui antes e publicada um ano após ter recebido o prêmio Maria Moors Cabot da Universidade Colúmbia, o mais importante do continente, e Mensalão: O Dia a Dia do Mais Importante Julgamento da História Política do Brasil, de 2013.

Desta vez, a inteligência e a experiência do acadêmico recolheram exemplos da delinquência política nacional, como o arrogante questionamento feito pelo petista Paulo Lacerda, antes de assumir a direção da Polícia Federal no governo Lula: “A PF deve ser censurada em seus questionamentos?”.

Na coluna de 8 de fevereiro de 2020, Merval resumiu numa palavra de origem grega (Coprolalia) o enxundioso e surrealista vocabulário do atual chefe do Executivo na comunicação com subordinados e patrões (nós outros, que pagamos seus salários e bancamos as práticas de peculato de seus descendentes, afilhados e contraparentes). Copro, fezes, lalia, fala, é uma doença, descrita como síndrome do uso descontrolado de palavras obscenas. Esse texto aborda o objeto permanente da crônica passageira que vira lição perene. Comentando vídeo em que o presidente, vulgo “mito” (mentira), disse “o que eles querem é a nossa hemorroida, a nossa liberdade”, o jornalista registrou: “A boca suja do presidente Jair Bolsonaro não chamou a atenção apenas dos brasileiros, ganhou dimensões internacionais”. O colunista esclareceu: “Os principais jornais do mundo noticiaram a dimensão política do vídeo”. O acadêmico cunhou a sentença fecal em brasa ardente: “Bolsonaro falou cerca de 20 palavrões diferentes e outras palavras chulas ou com sentido dúbio, como no caso da ‘hemorroida’ colocada em uma frase aparentemente por ato falho, ou como uma metáfora que precisa ser explicada por uma mente pervertida”. Como diria o mestre Nelson Rodrigues, “batata”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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