Livro detalha o primeiro disco lançado por Nara Leão, em 1964

26/04/2022 19:42
Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

Roberto Menescal costuma dizer que Nara Leão (1942-1989) é a cantora mais inteligente do Brasil. Que as demais não se ofendam. Para além dos laços afetivos – eles se conheceram no começo da adolescência e chegaram a ser namorados -, o músico, com essa fala, afirma o que o jornalista e crítico musical Hugo Sukman esmiúça no livro Nara Leão: Nara – 1964, sobre o LP de estreia da cantora.

“É um disco impecável, da primeira à última faixa. Uma obra de vanguarda. Anuncia o que a música brasileira será nos dez anos seguintes”, diz Sukman que, ao receber o convite da filha de Nara, Isabel Diegues, para escrever um livro sobre um dos discos da cantora, já tinha em mente o de 1964. O martelo foi batido quando ele, em março do ano passado, fez uma viagem de carro de São Paulo para o Rio de Janeiro e ouviu toda a discografia de Nara durante o percurso.

Para explicar a importância das 12 faixas escolhidas por Nara, o jornalista traçou uma cronologia que a levou a perceber e bancar algo novo – e diferente do que era esperado para uma cantora que era chamada de musa da bossa nova. “Em vez de inteligente, eu prefiro usar curadora”, observa.

Gravado em agosto de 1963, produzido por Aloysio de Oliveira, Nara traz faixas como Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, Luz Negra, de Nelson Cavaquinho e Amâncio Costa, Canção da Terra, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e O Sol Nascerá, de Cartola e Elton Medeiros.

Nara, à época, estava mais ligada a Lyra e ao sambista Zé Keti, dois nomes – o livro traz cerca de 100 personagens – que Sukman afirma serem centrais na mudança trazida pelo álbum.

“Eles, consciente ou inconscientemente, estavam imbuídos em ampliar esteticamente a música brasileira. Não queriam perder a bossa nova e o samba tradicional, o de morro, mas criar algo novo, que foi a moderna música brasileira, que depois foi chamada de MPB”, explica.

Nara foi, então, sem empáfia, a voz dessa nova estética. Cartola havia sido redescoberto pelo cronista Sérgio Porto em 1957, mas só voltaria a fazer sucesso de fato com a gravação de Nara. O próprio Porto produziu o primeiro disco de Nelson Cavaquinho em 1966, dois anos após a gravação da cantora para Luz Negra.

O álbum traz ainda Berimbau, de Vinicius e Baden Powell, que ainda nem era chamado de afro-samba. Outro exemplo: a faixa Nanã (Coisa Nº 5), que estaria no clássico disco Coisas, de Moacir Santos, lançado em 1965.

O LP ainda tem outra importância fundamental na carreira de Nara. Foi com esse álbum que ela percebeu que poderia usar sua voz para se posicionar contra a ditadura militar. “Há esse aspecto político, mas outro muito interessante. A Nara não queria ser artista nos moldes como se conhece. Ela cantava no palco como cantava em casa. Esse tipo de música permitiu que uma cantora como ela se tornasse profissional. Nara encontrou um sentido na profissão e o público achou um sentido nela”, informa Sukman.

FEMINISTA

Sukman mostra no livro como Nara sempre foi consciente e defensora dos direitos das mulheres. E desde muito cedo. Primeiro, ao gravar, ao lado de Carlos Lyra, a canção É Tão Triste Dizer Adeus, composição dele e de Nelson Lins de Barros. A música traz versos que respondem ao apelo de um homem para que a mulher fique. “Mas pra que / Que eu vou ficar / Pra comida preparar / E ter filhos pra criar / E ter roupa pra lavar.” Nara, à época, tinha 21 anos.

Dois anos antes, no que seria sua primeira gravação, se livrou de um famoso maestro da época que supostamente a teria assediado no estúdio. Rejeitou também a sugestão para que cantasse Insensatez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, de maneira sensual.

Quando selecionava o repertório do disco, achou o samba Amor Proibido, de Cartola, bonito, mas não se sentiu à vontade para cantar os versos “Fácil demais / Fui presa / Servi de pasto / Em tua mesa”.

Esses acontecimentos narrados no livro inevitavelmente esbarram na polêmica levantada pela série O Canto Livre de Nara Leão, de Renato Terra, lançada em janeiro deste ano pela Globoplay. Nela, há um depoimento de Chico Buarque afirmando que não canta mais a canção Com Acúçar, Com Afeto por achá-la machista. A música foi um pedido de Nara para Chico, na segunda metade dos anos 1960. Sukman acredita que a discussão gerada a partir da opinião do compositor se desenrolou de maneira “pobre”.

“Nara, influenciada pelo Cacá Diegues (cineasta, com quem foi casada) e o pessoal do cinema, estava em um ‘banho’ de músicas dos anos 1930. Ela se encantou com as músicas do Ary Barroso e do Assis Valente que falam da mulher que sofre por amor. Ela pediu ao Chico que fizesse algo do tipo, mas novo, contemporâneo. Esse é o contexto”, lembra.

Sukman garante que a canção não trata simplesmente de uma mulher oprimida – e Nara tampouco faz um apelo para que isso aconteça. “A bossa nova retratava as mulheres das classes mais altas. Mas a realidade da maioria delas não era essa. Lindoneia, que ela pediu ao Caetano, também fala sobre uma mulher oprimida. A busca da Nara era pela mulher brasileira. Ou seja, é o contrário do que estão falando.”

Serviço:

Nara Leão: Nara – 1964

Hugo Sukman

Editora Cobogó

224 páginas

R$ 39,92

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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