Marieta Severo e Everaldo pontes são trunfos no delicado filme ‘Noites de Alface’

28/06/2021 07:10
Por Luiz Zanin Oricchio / Estadão

No início, vemos um casal de idosos, Otto (Everaldo Pontes) e Ada (Marieta Severo). Ela senta-se no degrau da varanda e diz que está cansada, muito cansada. Ele a ajuda a se levantar, entram juntos na casa. É o início de Noites de Alface, longa de Zeca Ferreira, em cartaz nos cinemas e inspirado no romance de mesmo nome de Vanessa Barbara. A partir dessas cenas, começamos a acompanhar o relacionamento entre Otto e Ada.

O ambiente é claro, doméstico, suburbano. Lembra algo passado, como anos 1950, em algum bairro afastado de São Paulo, ou na Zona Norte do Rio, ou em qualquer localidade. Bárbara sempre dialoga com seu bairro, o Mandaqui, extremo norte de São Paulo. Mas o filme foi realizado em Paquetá, no Rio.

Assim como no livro, a história transcrita em filme trabalha com poucos personagens e elementos ambientais mínimos. Há o casal e sua casa, mais alguns vizinhos, a rua defronte, dois carteiros. E, sobretudo, o cotidiano dos dois velhos, carregado de uma certa ambiguidade. Ada é toda atividade. Ela é quem faz os serviços domésticos, sai para a rua e traz de volta para casa as novidades. Ele se entretém com romances policiais e de mistério.

Aqui temos um dos trunfos do filme, na verdade o seu principal: um ator e uma atriz não apenas muito bons, mas ambos fora de série. Everaldo Pontes e Marieta Severo compõem mais que uma bela dupla, com atuações discretas porém marcantes. São extraordinários. Intensos, porém sutis o suficiente para sustentar a ambiguidade de fundo da trama.

Marieta é envolvente com sua caracterização aberta, porém um tanto misteriosa, como convém à personagem. Igualmente convincente é Everaldo, em consonância com seu personagem Otto, que parece sempre estar um pouco por fora do que se passa. Nem tanto porque seja “desligado”, mas por seus excessos de imaginação. Assim como Quixote delira por causa dos romances de cavalaria, Otto desloca-se do eixo em razão dos livros e programas policiais.

Tudo isso é feito de maneira delicada e sutil. A ideia parece mesmo ser a de montar um microcosmo social, embora não representativo da sociedade em seu todo. Retrata algo um pouco fora do tempo e lugar. À parte. Não que essa fatia social seja idealizada. Longe disso. Mas encontra-se nela essa antiga sociabilidade suburbana, em que os vizinhos conversam, se visitam, trocam pequenos mimos, e se cotizam para promover a quermesse da igreja. Algo que talvez se conserve ainda em determinados bairros das grandes cidades, mas que, com o avanço da especulação imobiliária, desaparecem pouco a pouco. Há algo nostálgico em Noites de Alface. Mas convém não se iludir muito.

À parte a dupla central, há também o desenho interessante dos personagens secundários. Por exemplo, as vizinhas Tereza (Inês Peixoto) e Iolanda (Teuda Bara), o farmacêutico Nico (João Pedro Zappa) e o carteiro Aníbal (Romeu Evaristo). E, sim, o veterano japonês da 2ª Guerra Mundial, o sr. Tanigushi (Antonio Sakatsume), que vive com sua filha (Lum Kin) e sofre de Alzheimer. O sr. Tanigushi lutava nas Filipinas quando o Japão se rendeu, mas ele não ficou sabendo. Continuou sua guerra particular durante mais de 33 anos escondido na mata. Em sua demência senil, sente voltarem as lembranças do conflito.

O interesse da história é montar um fato radical, o “incidente”, num ambiente em que parece que nada vai acontecer. Essa surpresa é um pouco atenuada por opções de filmagem. E talvez haja um problema em sustentar a ambiguidade que ronda o relacionamento entre Otto e Ada, um pouco cifrado ou oculto a mais na percepção do espectador. Mesmo o mistério ganha ao ser apresentado com clareza. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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