Medo de cachorro
Não dou mais vexames, de escapar pulando janelas, mas quando vem um pequinês latindo, um poodle rosnando, minha respiração acelera, as pupilas se dilatam, fico em ponto de fuga. Assim cruzo na rua com vira-latas, e mudo a calçada ao ver alguém desfilando seu pit bull. Visto cautelas na casa onde o cão, solto e bobão, se põe a me rondar com seu olfato e até afetos. Medo ancestral, que não alcançam os que tem cães por família, neles se enroscam para cochilos, dão a cara a lamber, e desfalecem de dor quando, na enfermidade ou senectude, chega o duro adeus ao familiar de quatro patas.
A gênese do medo está lá nos 03, 04 anos de idade. Tínhamos um collie, na moda por causa dos filmes da Lassie. Porte nobre, pelo de caramelo dourado com branco, lindo, com o simplório nome de “Dog”. Pelo que me contam, eu também brincava com ele. Há uma foto, eu e um irmão ao lado dele. Nota-se que algo já houvera entre nós, pois meu irmão está bem achegado ao cachorro, enquanto mantenho cautelosa distância. Um dia, o Dog me mordeu. Avançou e abocanhou minha perna. Não lembro o porquê. Consta que eu teria ido cavalgá-lo ou algo assim, justo na hora em que ele comia. Imprudência perigosa. Sempre dócil, Dog não admitia interferências na refeição. Aquela mordida apresentou-me ao medo.
Passei a sofrer com isso. Cachorros farejam medo. No encontro com o cão negro na rua deserta, voltando sozinho da escola, nos encaramos, duelo de faroeste. Eu trêmulo, o cachorro ao longe, sentindo a situação. Após uma eternidade, ele se pôs em riste, e avançou em caçada. Corri atropeladamente pela rua, subi a vila à direita na Rua João Caetano, o coração na boca, e pulei dentro da primeira varanda que achei. Não lembro como saí daquele vexame.
Já adulto, tinha aquela gorda vira-lata pastor alemão, tetas inchadas de recente gravidez. Eu ia acelerado em caminhada matinal. Na praça do Alto, Teresópolis, a cadela congelou em mim os olhos faiscantes, postura de quem media sua presa. Não tinha eu mais nem idade nem velocidade para o vexame da fuga necessária, em carreira que ainda por cima ia perder. Congelei enquanto ela atacava. Como não me mexi, ela estancou perto, latindo e rosnando. Trêmulo, respirei fundo e esperei. Uma eternidade! Aos poucos ela se desmobilizou e vagarosamente, suando, segui meu caminho. Mudei o trajeto das futuras caminhadas, para evitar novo susto.
Meus netos ganharam uma pug. Passei meses entrando na casa meio de lado, desconfiado. Mas a Mel hoje me entende e até arrisco um ou outro afago breve em seu pelo. Quando estamos sós, generosa, ela respeita meus receios, e se posta junto a mim, sem maiores intimidades além da mera companhia.
Dizem: quem não gosta de cachorro, bom sujeito não é. Na verdade, tento ser um cara bacana e até gosto de samba! Não desgosto de cachorros, os acho pérolas da criação. Mas carrego a mordida de collie na perna da memória. Como todo trauma de infância, é custoso. Quase uma perda ou abandono. Mordidas de cachorro, dizem psicólogos, podem gerar depressão infantil e estresse pós-traumático em adultos. Houve a ópera no CCBB ano passado, “Na Boca do Cão”. A soprano Gabriela Geluda a encomendou e interpretou para purgar o trauma de ter tido em infância tenra a cabeça abocanhada por um cão.
No fundo, ainda que em metáfora, acho que todo mundo, para bem viver, precisa superar alguma forma de mordida de algum tipo de cão que rosna das funduras do seu passado.
denilsoncdearaujo.blogspot.com