Meu querido “Poeira”

23/09/2020 09:45

Lá pelos meus 6/7 anos de idade – menino cheio de sonhos, ainda sem o cerco dos demônios existenciais – comecei a frequentar semanalmente as sessões de cinema oferecidas pelo Cine-Teatro Santa Cecilia à população petropolitana, na sede da Escola de Música Santa Cecilia, à rua Marechal Deodoro nº 192. Funcionava em um acanhado salão, no prédio de um pavimento já muito castigado pelo tempo. O interessado, para ingressar na sala de exibição, dispunha de duas portas: a primeira levava ao setor das cadeiras e a segunda, a bancos rústicos que constituíam o setor denominado “geral”. Uma divisão, em grade de madeira, na metade do salão, definia o custo do ingresso, isto porque as cadeiras, um pouquinho mais confortáveis e espaçosas, eram mais caras e a “geral” atendia àqueles que dispunham de menos recursos financeiros. Não se tratava de “meia-entrada” e nem se havia inventado a redução do valor de ingressos para estudantes e outras categorias. Assim funcionava satisfatoriamente o cineminha, sob a separação dos espectadores que compareciam com suas famílias (1ª classe) e a garotada (2ª classe) sempre em ruidosa ânsia pelos murros dos mocinhos, as aventuras nas selvas ou os mistérios policiais, sagrado divertimento-coqueluche da meninada. Tempos outros, outras posturas municipais e até internacionais.

O cinema, apelidado pela meninada de “Santa” existia na Escola de Música desde o dia 1º de agosto de 1929 e vinha, heroicamente, com a sua renda amealhando recursos para a administração e o ensino da entidade.

E foram passando os anos e estou eu no ano de 1942, com 7 anos de idade e muita inquietude infantil.

Meu pai, Joaquim Heleodoro III, era o presidente da Escola de Música, responsável por tudo o que ocorria na instituição e “gerente” do cinema. Tinha ele um  carinho imenso pelo cineminha e era ele, que pessoalmente, descia ao Rio de Janeiro e alugava os filmes junto à Columbia, Universal, Pathé, Monogram, Cinédia e outras companhias produtores e distribuidora das fitas de todo o planeta.

No Centro Histórico existia o Cinema Capitólio, sob administração do empresário carioca Luiz Severiano Ribeiro e este, no ano de 1942,  também arrendara o teatro D. Pedro, junto à família D ´Ângelo e aguardava o término da edificação do Edifício Petrópolis com novíssimo e mais moderno e bonito cinema já visto no Município, o Cinema Petrópolis, com entrega nos primeiros dias do ano de 1943, o que efetivamente ocorreu. Severiano Ribeiro passou a explorar as três melhores salas de cinema de Petrópolis e ficava, para o “Santa”, a condição de “poeira”, como eram conhecidos, em todo o país, os cineminhas pequenos, de bairros, de programações modestas constituídas de filmes classificado nas categorias “B” e “C”. Todas as semanas, de quinta-feira a domingo, o salão do “Santa” acolhia ruidosas plateias dispostas a assistir, se emocionar, aplaudir, rir-rir, enfim, diversão garantida. Em uma mesma sessão iluminava-se a tela com um jornal de atualidades, um documentário – às vezes um desenho animado -, um faroeste ou um musical ou um filme policial e a fita principal, sempre uma produção mais rebuscada e com artistas consagrados. Terminava a maratona dois capítulos da fita-em-série, onde desfilavam ícones e vilões das revistas de quadrinhos e toda a sorte de heróis destemidos e briguentos.  Registre-se que, às vezes, sobravam sopapos na plateia entre meninos entusiasmados, logo escaramuças desfeitas pelo baleiro ou o porteiro da “geral” ou pelo próprio “seu Joaquim”.

Pois é, vou parando por aqui para que as lágrimas da saudade não ensopem o meu teclado, mas, sem deixar em aberto, o registro do cuidado de papai em não me levar nas sessões quando constavam filmes de drácula, frankenstein, múmia e cenas muitos explicitas de amor, embora a curiosidade daquele menino estranhava a proibição. Como disse, acima: tempos outros… meninos também.

E o pranto meu, no dia 1º de maio de 1949, quando o envelhecido cineminha “poeira” virou poeira integrante da demolição que abriu o espaço para a edificação do prédio da atual e mesma Escola de Música Santa Cecilia.

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