Minha querida Remington
Uma das coisas legais do Google são os “doodles”, a modificação diária da logomarca, tematizando-a em reverência à efeméride ou personalidade do dia. Já houve doodles para Pelé, Santos Dumont, Bach, a Primavera, a Copa do Mundo, a Consciência Negra. Lista longa e democrática. E homenagens inusitadas como a da terça-feira passada. O 131º aniversário do furador de papel foi comemorado por um doodle de confetes dele extraídos!
Quem trabalhou em banco, repartição ou escritório, ao menos uma vez aproveitou os confetes de papel dos furadores para a festa da empresa, ou para chatear um colega. Lúdico, dava filosofia: da sisudez dos graves arquivos de pastas que o furador permitia organizar, restava na caixeta de plástico aquele carnaval portátil. Fiquei nostálgico desse tempo de maquinárias de ferro, grampeadores mastodônticos, gigantescas guilhotinas, sisudas máquinas de escrever, e até grossas agulhas de costurar processos.
O Google me disse que a primeira patente dessa fábrica de confetes portátil, é de 1886, do alemão Soennecken. Uma coisa leva a outra, e vi que o primeiro grampeador vem da corte de Luis XV, e a primeira máquina de escrever, de 1714, de um tal de Henry Mill. Mas o teclado só surgiria em 1808, pelas mãos do italiano Turri, aperfeiçoado em 1843 pelo americano Thurber. Foi quando bateu saudade da minha primeira máquina de escrever. Uma Olivetti miúda, portátil, carcomida e usada, com teclas bambas que faziam as varetas dos tipos se engancharem todas, borrando no papel uma pletora de belos vocábulos inexistentes. Adolescente, eu a levava aos jardins do Museu Imperial onde, com ela sobre as pernas, teclava grosseiros contos cheios de sonho. Dali saiu a história do servente que descia do Caxambu no carcomido ônibus e para inaugurar seu dia namorava pelo vidro ruço da madrugada a mulata de fita vermelha no cabelo, que botava um sorriso aurora na janela do casarão em frente ao ponto do ônibus. Um dia ele desceu empunhando uma rosa. Mas nos degraus do casarão, as varetas da Olivetti se inutilizaram, emboladas na ansiedade pelo beijo apaixonado que ainda viria.
Um dia meu pai me deu sua velha Remington. Que realização! Nela tinha aprendido a datilografar, aos 8 ou 9 anos. Quatro dedos, nada do clássico “asdfg”, nada de aulas com a lendária D. Ernestina Francioni. A precocidade me fez datilógrafo pouco técnico, mas extraordinariamente rápido. No concurso para o Banco do Brasil, sem noção de tempo, digitei num flash o texto da prova e fiquei “horas” esperando os demais candidatos acabarem, a ponto do monitor vir perguntar se eu não ia começar a prova, que então viu já terminada.
A paquidérmica Remington, em percussão ritmada, deu-me artigos, cartas, contos, poemas, panfletos, manifestos, sermões, dois livros, sonhos, suores e lágrimas. Veio o computador. Foi fatal a celeridade da datilografia posta na digitação. Como esta exige músculo, e aquela, leve toque que só aprendi depois de destroçar teclados, fiquei ainda mais rápido. Consequência: tendinites crônicas. Mas mesmo nessa época, sempre mantinha ao meu lado, como um totem inspirador, a máquina de cinza militar, teclado verde-musgo e fita rubro-negra. Infelizmente, numa das muitas mudanças que a vida me impôs, essa companheira querida se extraviou. Esteja onde estiver, nela viverão restos meus, de luas em rascunho e inacabados poemas. Minha querida Remington, minha velha locomotiva de sonhos.
denilsoncdearaujo.blogspot.com