Moderadores de conteúdo do Facebook no Quênia chamam o trabalho de tortura e entram com ação

05/07/2023 14:01
Por Evelyne Musambi e Cara Anna, Associated Press / Estadão

À beira de lágrimas, Nathan Nkunzimana se recorda de assistir a um vídeo de uma criança sofrendo abuso, e a outro, de uma mulher sendo assinada.

Oito horas por dia, seu trabalho como moderador de conteúdo para uma prestadora de serviços do Facebook exigia que ele visse horrores para que o mundo não precisasse fazê-lo. Alguns colegas, esgotados, gritavam ou choravam, segundo ele.

Nkunzimana agora está entre os quase 200 ex-funcionários no Quênia que estão processando o Facebook e a prestadora de serviços local Sama pelas condições de trabalho, o que poderia ter consequências para moderadores de redes sociais em todo o mundo. É o primeiro questionamento judicial fora dos Estados Unidos, onde o Facebook fez um acordo com os moderadores em 2020.

O grupo trabalhava no centro terceirizado do gigante das redes sociais para moderação de conteúdo na capital do Quênia, Nairóbi, onde os funcionários examinam publicações, vídeos, mensagens e outros tipos de conteúdo de usuários de toda a África, removendo materiais ilícitos ou prejudiciais que violem os padrões da comunidade e os termos de uso.

Os moderadores de vários países africanos estão pleiteando uma indenização de US$1,6 bilhão (R$7,6 bilhões) pela alegação de más condições de trabalho, que incluem apoio insuficiente à saúde mental e baixos salários. No começo deste ano, eles foram demitidos pela Sama, que deixou o ramo de moderação de conteúdo. Eles afirmam que as empresas estão descumprindo uma ordem judicial para que seus contratos sejam prorrogados até que o caso esteja decidido.

Facebook e Sama defenderam suas práticas trabalhistas.

Sem muita certeza de quanto tempo o processo levará para ser concluído, os moderadores expressaram desespero à medida que o dinheiro e as autorizações de trabalho se esgotam, e eles precisam lidar com as imagens traumáticas que os assombram.

“Se você se sente confortável em navegar e percorrer uma página do Facebook, é porque existe alguém como eu que já passou por aquela tela a verificou: ‘é adequado isso estar aqui?'”, diz Nkunzimana, um pai de três filhos do Burundi, à Associated Press, em Nairóbi.

O homem de 33 anos considera que os moderadores de conteúdo são como “soldados” levando tiros em prol dos usuários do Facebook, e que os funcionários assistem conteúdo prejudicial que mostra assassinatos, suicídio e agressão sexual e asseguram que seja removido.

Para Nkunzimana e outros, o trabalho começou com um sentimento de orgulho, de que eles eram “heróis da comunidade”, diz.

Mas quando a exposição a conteúdo assustador reacendeu traumas do passado para pessoas como ele, que haviam fugido de violência política ou étnica em seu lugar de origem, os moderadores encontraram pouco apoio e uma cultura de sigilo.

Eles foram convidados a assinar acordos de confidencialidade. Itens pessoais, como telefones, não eram permitidos no trabalho.

Depois do fim do turno, Nkuzimana ia exausto para casa, e muitas vezes se trancava no quarto para tentar esquecer o que tinha visto. Nem sua esposa fazia ideia de como era seu trabalho.

Hoje em dia, ele se tranca no quarto para evitar as perguntas do filho sobre por que não está mais trabalhando e por que eles talvez não consigam mais pagar as mensalidades da escola. O salário dos moderadores de conteúdo era de US$429 (R$2.100) por mês, e não quenianos recebiam um pequeno subsídio de expatriados além disso.

A prestadora de serviços do Facebook, Sama, com sede nos EUA, pouco fez para garantir a oferta de acompanhamento profissional pós-traumático aos moderadores do escritório de Nairóbi, segundo Nkuzimana. Ele diz que os terapeutas eram mal treinados para lidar com o que seus colegas estavam vivenciando. Atualmente, sem assistência de saúde mental, ele mergulha na igreja.

A Meta, controladora do Facebook, diz que seus prestadores de serviço têm obrigação contratual de remunerar os funcionários acima da média do setor nos mercados onde atuam, e oferecer apoio local com profissionais treinados.

Um representante informou que a Meta não poderia comentar sobre o caso do Quênia.

Em um e-mail enviado à AP, a empresa Sama declarou que os salários oferecidos no Quênia eram quatro vezes maiores que o salário mínimo local, e que “mais de 60% dos funcionários do sexo masculino e mais de 70% das funcionárias do sexo feminino viviam abaixo da linha internacional de pobreza (menos de US$1,90, ou R$9,11 por dia)” antes de serem contratados.

A Sama diz que todos os funcionários tinham acesso ilimitado ao acompanhamento psicológico individual “sem medo de repercussões”. A prestadora de serviços também considerou “confusa” a recente decisão judicial que determinou a prorrogação dos contratos de trabalho dos moderadores, e afirmou que uma decisão posterior teria suspendido aquela, e que, portanto, ela não teria produzido efeitos.

Esse trabalho tem o potencial de ser “incrivelmente prejudicial psicologicamente”, mas os candidatos a empregos em países de baixa renda podem assumir o risco em troca de um emprego de escritório na indústria de tecnologia, diz Sarah Roberts, especialista em moderação de conteúdo na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

Em países como o Quênia, onde há abundância de mão de obra barata disponível, a terceirização de um trabalho tão delicado é “uma história de uma indústria exploradora baseada no uso da desigualdade econômica global a seu favor, causando danos e depois evitando a responsabilidade, porque as empresas dizem: ‘Bem, nunca contratamos fulano de tal, quem fez isso foi a terceirizada'”, diz.

Além disso, a assistência de saúde mental oferecida pode não ser “a melhor das melhores”, e já foram apontados receios sobre a confidencialidade da terapia, segundo Roberts, professora associada de estudos da informação.

A diferença no processo judicial do Quênia, para ela, é que os moderadores estão se organizando e reagindo contra as condições, causando uma visibilidade excepcional. A tática mais comum nesses casos, nos EUA, é fazer acordos, mas “se as ações forem ajuizadas em outros lugares, isso pode não ser tão fácil para as empresas”.

O Facebook investiu em centros de moderação em todo o mundo depois de ser acusado de permitir a circulação de discurso de ódio em países como Etiópia e Mianmar, onde os conflitos matavam milhares de pessoas e o conteúdo nocivo era publicado em vários idiomas locais.

Escolhidos por sua fluência em diversas línguas africanas, os moderadores contratados pela Sama no Quênia logo se viram diante de conteúdo gráfico dolorosamente familiar.

Os dois anos em que Fasica Gebrekidan trabalhou como moderadora coincidem com a guerra em sua região natal, em Tigré, no norte da Etiópia, onde centenas de milhares de pessoas foram mortas e muitos tigrínios como ela sabem pouco sobre o destino das pessoas queridas.

Já sofrendo por precisar fugir do conflito, a mulher de 28 anos passava seus dias de trabalho assistindo a vídeos “horríveis” e outros tipos de conteúdo predominantemente associados à guerra, incluindo estupros. Ela precisava assistir os primeiros 50 segundos e os últimos 50 segundos dos vídeos para decidir se deveriam ser removidos.

O sentimento de gratidão que tivera ao conseguir o emprego logo desapareceu.

“Você foge da guerra, e então você precisa ver a guerra”, diz Fasica. “Era simplesmente uma tortura para nós.”

Ela agora não tem renda, nem residência permanente. Ela disse que procuraria novas oportunidades caso conseguisse se sentir normal novamente. Ex-jornalista, não consegue mais escrever, nem mesmo como válvula de escape para suas emoções.

Fasica teme que “esse lixo” permaneça em sua cabeça para sempre. Enquanto conversava com a AP, ela mantinha os olhos em uma pintura do outro lado da cafeteria, vermelho escura com o que parecia ser um homem em apuros. A pintura a incomodou.

Fasica culpa o Facebook pela falta de assistência de saúde mental e remuneração adequadas, e acusa a prestadora de serviços local de usá-la e dispensá-la.

“O Facebook deveria saber o que está acontecendo”, diz. “Deveriam se importar conosco.”

O destino da denúncia dos moderadores está nas mãos do judiciário do Quênia, e a próxima audiência está marcada para 10 de julho.

A incerteza é frustrante, diz Fasica. Alguns moderadores estão desistindo e retornando para seus países de origem, mas isso ainda não é uma possibilidade para ela.

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