Morre a escritora Lygia Fagundes Telles, aos 98 anos
Dama da literatura nacional, uma das mais amadas escritoras brasileiras, Lygia Fagundes Telles morreu na manhã deste domingo (3), aos 98 anos. A informação foi confirmada ao Estadão por sua neta, Lúcia, que informou que a avó não passava por nenhum tratamento de doença e ainda não se sabe a causa da morte. “Ela estava velhinha, não sofreu nada”, disse.
Autora de uma obra de estilo elegante, ecos machadianos e um permanente estado de espírito que permite manipular a escrita com firmeza e serenidade, Lygia sempre ofereceu ao leitor a oportunidade de pensar sobre suas existências. E seus personagens, especialmente os femininos, exibiram a pluralidade das vozes das mulheres, tornando-se símbolo da luta contra a hipocrisia da sociedade.
A escritora Lygia Fagundes Telles descobriu a força que seus personagens exerciam sobre os leitores quando publicou a seleção Meus Contos Preferidos, lançada em 2004. “Uma moça, na barraca do caqui na feira, me reconheceu e cobrou a ausência de Herbarium; dias antes, um sujeito me parou na rua reclamando que não tinha selecionado outro conto, Boa Noite, Maria. Voltei para casa e a carta de uma moça dizia que eu tinha me esquecido de A Confissão de Leontina. Parecia um complô”, riu-se a escritora, que usava a escrita como testemunho da vida, da própria vida.
Muitos de seus livros se tornaram clássicos, como o romance As Meninas, de 1973, obra inspiradora pois reflete o impasse de jovens que viveram numa época obscura. A literatura sempre foi, para Lygia, um caminho para mudar o mundo. Pelas letras, ela transmitiu aos leitores a aventura de novos conhecimentos – seja pelos detalhes do cotidiano, pelo devaneio particular ou mesmo pela vida da imaginação.
Lygia de Azevedo Fagundes nasceu no dia 19 de abril de 1923, na rua Barão de Tatuí, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Era a quarta filha de uma pianista, Zazita, e do procurador promotor público Durval de Azevedo Fagundes. Por conta da profissão do pai, ela e a família se mudaram para várias cidades paulistas. Se da mãe herdou a vocação artística, de Durval, Lygia descobriu uma de suas profissões.
“Decidi ser advogada por causa do meu pai, Durval, que também se formou na São Francisco. Era um homem lindo, adorável, mas que tinha um grande pecado: era um jogador contumaz. Adorava roleta. Ele me levava a um cassino em Santos e, enquanto eu, pequena, tomava uma enorme taça de sorvete, meu pai jogava as fichas e as perdia, uma a uma. Quando íamos embora, derrotados, ele sempre dizia: ‘Hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha’. Eu o admirava muito”, relembrou Lygia ao Estadão, em 2013. “Mas não foi fácil estudar na São Francisco. Na minha turma, éramos apenas seis mulheres entre mais de cem homens. Todas virgens! Certa vez, um dos meus colegas me perguntou: ‘O que vocês, mulheres, querem aqui na faculdade? Casar?’ Respondi, de bate-pronto: ‘Também!’ Mal sabia ele que me casaria com um dos professores (Gofredo da Silva Telles Júnior).”
Lygia se matriculou na Faculdade de Direito em 1941. Lá, conheceu a poeta Hilda Hilst, que logo se tornou uma de suas melhores amigas – antes, ela se formou em educação física, também pela USP. Apesar dos dois cursos, a escrita começa a se impor no seu caminho, principalmente depois que começou a participar ativamente de debates literários.
Seu primeiro livro, Porão e Sobrado, foi publicado em 1938, em edição financiada pelo pai. Já o segundo, Praia Viva, saiu em 1944, um ano antes de seu bacharelado. Em 1949, três anos depois do término do curso de Direito, a escritora publicou seu terceiro livro de contos, O Cacto Vermelho, pelo qual recebeu o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras.
Do casamento com Gofredo da Silva Telles Júnior, em 1947, adquiriu o sobrenome e teve um filho que muito amou, o cineasta Goffredo Telles Neto, que morreu em 2006, aos 52 anos. Foi na década de 1950 que Lygia escreveu seu primeiro romance, Ciranda de Pedra (1954), que a tornou nacionalmente conhecida pelo público e reconhecida pela crítica – Antonio Cândido, por exemplo, considerava essa obra o marco de sua maioridade como escritora.
O segundo romance, Verão no Aquário, foi lançado em 1963, mesmo ano em que se casou com o crítico cinematográfico Paulo Emílio Sales Gomes. Na verdade, foi um escândalo, pois ela continuava oficialmente casada com Gofredo – a lei brasileira não admitia ainda o divórcio. Em meio a uma grande maledicência, o casal viveu bem e feliz, até a morte dele, em 1977.
Ao Estadão, Lygia gostava de se lembrar dessa fase de felicidade. “Paulo Emílio era um homem encantador, inteligente, vibrante, irônico. Ele me apelidou de Cuco, brincadeira com o relógio de uma velha tia cujo cuco sempre cantava as horas com atraso – eu sempre me atrasava para nossos compromissos. Também apelidou meu filho Goffredinho de Cré, pois, nas aulas de francês, quando o garoto errava feio, Paulo disparava: ‘Crétain!’ (cretino)”, contava, sorridente.
“Paulo sempre foi um grande incentivador da minha obra, especialmente nos momentos mais difíceis”, continuava. “Como em 1973, quando publiquei As Meninas. Era época pesada da ditadura militar e eu me inspirei, entre outras coisas, num panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político. Coloquei isso no meio da trama e fiquei apreensiva quando o livro foi enviado para a censura. Enquanto aguardava, nervosa, o veredicto, fui surpreendida pela chegada, alegre, de Paulo, em nosso apartamento. Ele trazia uma garrafa de vinho e estava muito disposto a comemorar. Logo explicou: aborrecido com uma história em que não acontecia nada, o censor só lera algumas páginas, não chegara àquele ponto da tortura e liberava a obra.”
Nos contos, Lygia também exibia um talento único, como comprovam Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos Ratos (1977), A Estrutura da Bolha de Sabão (1978), A Disciplina do Amor (1980), Mistérios (1981), A Noite Escura e Mais Eu (1998) e Invenção e Memória (2000). O que os torna tão intensos é a busca da escritora, a partir de seus personagens, das respostas que dão sentido à vida e que permitem às pessoas descobrir a melhor forma de interagir com o mundo externo. Lygia também cria seres que não se livram da memória, vivendo imersos na temporalidade.
Em 1985, ela foi eleita para ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, iniciando uma fase de reconhecimento internacional, como se consagrando Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal (1987) e, principalmente, com o recebimento, em 2005, do Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa, pelo conjunto da obra.
Lygia sabia que o talento só era bem exercido com muito esforço – por isso, dizia que rasgava muito seus originais até conquistar o texto que considerava ideal. “Para escrever, você precisa se dedicar de corpo e alma a seu personagem, a seu enredo e à sua ideia”, ensinava. “É preciso que seja um ato de amor, uma doação absoluta, e é impossível sair do transe enquanto não dá a história por acabada, enquanto não decifra o humano. O detalhe é que o ser humano é indefinível. Por mais que tente, você não consegue defini-lo totalmente. O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável, ele está sujeito a esses três ‘Is’.”