Morre, aos 96 anos, Maria Fernanda, atriz que criticou a censura
A atriz Maria Fernanda morreu aos 96 anos de idade, por volta das 18h do último sábado, 30. Ela vinha internada com complicações respiratórias na Casa de Saúde São José, no bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro, havia quatro dias
Nascida em 27 de outubro de 1925, Maria Fernanda Meireles Correia Dias era filha da poetisa Cecília Meireles (1901-1964) e do ilustrador Correia Dias (1892-1935). Começou no teatro ainda na década de 1940, quando fez Ofélia em uma montagem da peça Hamlet, da qual participaram também Sérgio Cardoso e Sérgio Britto, em 1948. Na década seguinte, foi estudar artes cênicas na Europa.
Já de volta ao Brasil, conseguiu destaque fazendo o papel de Blanche DuBois em Um Bonde Chamado Desejo, em 1959. Consta que Vivien Leigh, que venceu o Oscar de Melhor Atriz em 1952 por interpretar a mesma personagem no filme homônimo, quando esteve ao Brasil, chegou a assisti-la. Foram mais de 10 anos em cartaz, o que lhe rendeu elogios, críticas positivas, o Prêmio Saci, então organizado pelo Estadão, e o Prêmio Moliére de Melhor Atriz, em 1963.
Em 6 de abril de 1962, às vésperas de uma apresentação de Um Bonde Chamado Desejo no Teatro Oficina, em São Paulo (que, inclusive, precisou ser adiada em alguns dias após a atriz sofrer um corte com vidro em um acidente no braço), constava no Estadão:
“O entusiasmo da atriz pela personagem é enorme. Conta Maria Fernanda que conviveu com os loucos em um manicômio para poder fazer melhor a neurótica que o papel exige. Teve também que pintar os cabelos de loiro. Perdeu três quilos e promete que vai chegar aos 43 antes da estreia”
“Todos nós somos uma Blanche. Seu drama é o de todos nós, é o nosso cotidiano. É a busca de tudo o que queremos e que não temos. Esse é o sentido do título, Um Bonde Chamado Desejo. Blanche representa simbolicamente toda a trajetória humana que é válida porque é cumprida. Hoje em dia [1962], mais do que nunca, há necessidade de que os povos se compreendam. Se isso for pedir muito, que pelo menos eles se falem”, destacava a atriz sobre sua principal personagem.
Maria Fernanda e a Censura
Foi por conta de Um Bonde Chamado Desejo que Maria Fernanda se indispôs com a censura durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). O episódio se deu em fevereiro de 1968, em Brasília (o Ato Institucional número 5 [AI-5], considerado um dos auges da repressão do período, ainda não estava em vigor, seria assinado em dezembro daquele ano).
“Senhoras e senhores. Em respeito ao público pagante, vimos declarar que a peça Um Bonde Chamado Desejo, que vamos levar agora, tendo sofrido cortes da censura, que serão mantidos por obediência, não por concordância, sofrerá uma pausa, em silêncio, correspondente a cada corte. Pedimos, por isso, a compreensão do público de Brasília”. Assim Maria Fernanda deu início à abertura da temporada, no dia 8 de fevereiro de 1968.
Mesmo assim, após a estreia da peça na capital do País, Maria Fernanda e seu então marido, Oscar Araripe, também ator, receberam uma notificação para pagar uma multa ao Serviço de Censura pelo uso de três expressões: “Você parece uma galinha”; “Vaca no cio”; “Essa minha mulher é uma vaca no cio”. O espetáculo era produzido por sua empresa teatral, a Maria Fernanda Ltda.
O casal foi ao gabinete do chefe do serviço de censura, Manoel Felipe de Souza Leão Neto, para pedir explicações sobre os cortes. Segundo Oscar, Leão teria se recusado a prestar-lhes esclarecimentos, afirmando que a censura não devia satisfações a ninguém. Araripe teria inclusive dito que, se estavam vivendo sob ditadura, que o censor lhes dissesse logo.
Os atores ainda pediram uma lista de palavras para substituir as censuradas, mas o censor afirmou que seria necessário que Brutus Pedreira, o tradutor, redigisse uma nova versão para aprovação – e foi surpreendido com a informação de que ele já havia morrido. À época, o texto usado ainda era o mesmo apresentado desde 1948, em montagem com Henrinete Morineau e Graça Melo.
Suspensa de ser atriz
Sob a justificativa de que “os atores Maria Fernanda e Oscar Araripe conduziram-se de maneira desrespeitosa e descortês ante autoridades censoriais”, o governo decidiu suspender as atividades profissionais dos dois atores por um período de 30 dias, além de proibir a apresentação da peça em Brasília por prazo indeterminado.
Maria Fernanda então fez um comunicado em que pediu que colegas de teatro “protestem violentamente contra o estado de ditadura que reina no País”, e afirmou: “Esses atos despóticos do chefe de censura, sr. Souza Leão, não representam o pensamento do governo para com a cultura, porque homens como o sr. Pedro Aleixo, vice-presidente da República, e o deputado Ernani Satiro, líder da maioria, mostraram a melhor boa vontade para resolver o problema”. A atriz ainda comunicou que, embora discordasse dos pontos censurados, gostaria de prosseguir com a apresentação da peça, obedendo a lei.
Desdobramentos
O episódio envolvendo Maria Fernanda, Oscar e a peça Um Bonde Chamado Desejo recebeu apoio da Associação de Escritores de Brasília, diversos intelectuais e também parlamentares. O fato chegou inclusive a ser debatido no plenário da Câmara dos Deputados naquela semana.
Após Cid Carvalho, vice-líder do MDB na Câmara, ter condenado a ação de censura, Geraldo Freire, líder da Arena (governo), posicionou-se do outro lado: “Não se pode abusar do teatro para comprometer os destinos espirituais da cultura brasileira”. O deputado ainda fez questão de “solidarizar-me com o general Façanha, porque teve a coragem de defender a moralidade e a cultura”. O Façanha, a quem se referia, era o então diretor da Polícia Federal de Segurança, Juvêncio Façanha, a quem ficava subordinado o serviço de Censura e Diversões Públicas.
Freire foi interrompido por um brado de “Façanha fascista!” vindo de Oswaldo Lima Filho, do MDB. E continuou seu discurso em seguida: “Bendito fascismo, se assim for. Se o fascismo for defensor da cultura, então o fascismo não é aquela doutrina que eu sempre condenei, a doutrina da força e da opressão da inteligência. Se o fascismo, de um lado, oprime a inteligência e a cultura, por outro lado este emporcalhamento da arte do bom gosto oprime a personalidade humana”.
Por conta do caso envolvendo Maria Fernanda, a classe artística se mobilizou e chegou a realizar uma greve de três dias sem apresentações nos teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro. Posteriormente, foi convocada também Passeata da Cultura Contra a Censura, que tomou espaço na Cinelândia durante o regime militar.
É possível relembrar parte deste fato nas reportagens do Estadão “A Censura suspende a atriz M. Fernanda”, veiculada em 10 de fevereiro, e “Maria Fernanda impetra mandado”, de 11 de fevereiro de 1968.
A carreira de Maria Fernanda
Ao longo das sete décadas em que fez sua carreira no teatro, esteve ainda em peças inspiradas nas obras de Nelson Rodrigues, Eurípedes, Tchekhov, Sartre, Brecht e Wilde, entre outros, como Vestido de Noiva, Doroteia, As Casadas Solteiras (1954), Verde que Te Quero Verde (1960), Santa Joana (1965), Jardim das Delícias (1971), As Três Irmãs (1972), O Romanceiro da Inconfidência (1983) e E O Vento Não Levou (1984).
Na televisão, esteve presente desde a década de 1950, com papéis nos teleteatros da época. Ainda esteve no elenco de diversas novelas, incluindo personagens como a sinhazinha Guedes Mendonça, em Gabriela (1975), e dona Gilda em Pai Herói (1979). No cinema, atuou desde os anos 1940, em produções dos principais estúdios da época. Fez parte do filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), que marcou a chamada Retomada do cinema nacional. No longa, dava vida à d. Maria I, ‘a Louca’.
Trabalhos recentes
Atuando cada vez menos a partir da década de 1990, conforme a idade foi avançando, despediu-se dos palcos com a peça A Importância de Ser Fiel, em 2004, junto ao grupo TAPA. No ano seguinte, foi lançado o filme O Quinze, baseado no livro de Rachel de Queiroz, que conta com Maria Fernanda no elenco. Ela também fez parte do júri teatral do Prêmio Shell.
A família não divulgou informações sobre o velório.