Mostra ajuda a limpar estigmas e dá profundidade à Carolina Maria de Jesus

13/10/2021 08:17
Por Guilherme Sobota, especial para o Estadão / Estadão

A exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros, em cartaz no Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista até o dia 30 de janeiro de 2022, é algo incomum sobre uma escritora cuja obra cada dia mais se consolida no imaginário literário nacional – apesar da curiosa característica de essa obra, na maior parte, ainda é desconhecida. Não obstante o sucesso estrondoso de Carolina nos anos 1960, agora renovado, o que a exposição faz é construir sobre essa obra um olhar contemporâneo ao redor das ausências que ainda cercam a história de Carolina. A mostra tem entrada gratuita com agendamento prévio pelo site do IMS.

Para um dos curadores da exposição, Hélio Menezes, a mostra não olha para Carolina com um olhar fetichista, especialmente em relação aos manuscritos e itens de sua trajetória – que são de fundamental importância -, mas que não dão conta da diversidade e da magnitude de Carolina justamente pelo conteúdo plural de sua produção e do seu impacto na cultura popular brasileira.

Na mostra, há obras de artistas do tempo de Carolina – como Arthur Bispo do Rosário, Zélia Gattai e Heitor dos Prazeres -, mas o núcleo é composto por artistas contemporâneos e comissionadas para a exposição: Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Eustáquio Neves, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Silvana Mendes, Sonia Gomes, entre muitos outros.

O processo de pesquisa para a mostra começou com o contato com as cerca de 6 mil páginas escritas por Carolina, hoje armazenadas no acervo de Sacramento, Minas Gerais, sua cidade natal. Logo no início, Menezes e a cocuradora Raquel Barreto se viram diante de um impasse: fazer uma exposição sobre o livro Quarto de Despejo – que em 2020, para quando a exposição era prevista antes da pandemia, completou 60 anos de publicação – ou sobre a autora do livro, que publicou outros volumes em vida, outros póstumos, e que tem cerca de 80% de sua produção ainda inédita. No primeiro caso, as pessoas esperariam uma exposição sobre os “manuscritos, por uma estética de favela e pobreza”, explica Hélio. O segundo caso, porém, enriqueceria a mostra abrindo campos para pesquisas ulteriores a partir de uma visão mais complexa e mais plural sobre as visões da artista.

“Ficou claro que seria importante entendê-la não apenas como escritora, mas também como multiartista, sendo ela cantora, compositora, dramaturga, tendo incursionado em produções têxteis, ter realizado apresentações performáticas, sobretudo em espaços circenses em que ela se apresentava em trajes elaborados por ela mesma”, diz o curador. “Nos vimos diante de uma figura muito mais complexa do que uma autora de um best-seller de um livro superimportante.”

O caminho foi então pensar em relações estéticas de artistas que estabelecem com Carolina séries de inspiração direta – alguns de fato construíram as obras a partir da leitura de textos da autora – mas também com artistas que realizaram procedimentos, na palavra do curador, “carolineanos”. São produções que se utilizam de materiais e suportes vinculados ao universo de Carolina, como sapatos, panelas, materiais têxteis ou aparentemente descartáveis. “Tais como Carolina, eles vão utilizar esses objetos retirando-lhes o uso mais imediatamente utilitário e entendendo-os como índices e signos de uma elaboração artística e conceitual.”

As obras então começam a dialogar com questões que Carolina levantava desde a primeira metade do século, mas que encontram ecos contemporâneos, como direito à cidade, direito à educação, relações paritárias e mais complexas de gênero, discursos que veem na escola e na leitura a formação moral dos sujeitos. “Essas frentes parecem férteis para dialogar com o legado que Carolina nos deixa”, conclui o curador.

A exposição contou com um conselho consultivo formado por nomes como a atriz e escritora Elisa Lucinda, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro entre outras, que ajudaram os dois curadores a construir a base conceitual da pesquisa. Mas a exposição também não deixa de jogar luz sobre aspectos menos divulgados da vida de Carolina, como por exemplo o fato de ela ter sido censurada em Portugal – Quarto de Despejo foi publicado pela primeira vez no país europeu apenas em 2021.

Outro aspecto que ganhou destaque na exposição foi a relação da autora com a imprensa. Sua trajetória com o jornalista Audálio Dantas é amplamente divulgada e discutida, mas mesmo em Quarto de Despejo é possível notar que a escritora buscava um relacionamento profissional com os jornalistas antes de conhecê-los. Um dos destaques da pesquisa para a exposição, agora, é que essa busca de Carolina começou muitos anos antes das matérias de Audálio e da publicação do livro em 1960: já em 1940, duas décadas antes, há registros na imprensa brasileira da obra de Carolina. Foi uma publicação na Folha da Manhã, em que Carolina aparece como “poetisa preta”, muito distante portanto da imagem de “escritora favelada” que lhe foi atribuída no fim dos anos 1950. A matéria está exposta no IMS.

Consenso entre o campo de pesquisa sobre Carolina é o de que sua obra ainda demandará décadas de pesquisa para ser totalmente compreendida – a exposição é sem dúvida um marco, bem como a recente publicação, ainda em fase inicial, de sua obra completa pela editora Companhia das Letras. “Há um dado sintomático no caso de Carolina: ela, em vida, percebeu que sua inventividade era muito mais ampla do que a de uma escritora de diários. Ela deixou escrito em seus cadernos sua reclamação e sua indignação sobre isso”, diz Menezes.

“Há uma inteligência excepcional, mas também me parece que isso é fruto de uma mulher com experiência de vida tamanha de quem viu a estrutura social do seu lugar mais baixo, ou seja, ela conseguia ver toda a estrutura”, reflete o curador. Não seriam os literatos, jornalistas e editores que poderiam lhe enganar.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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