Mostra comemora 100 anos de Lygia Clark, que renunciou à arte para reinventá-la
Ao apresentar a artista brasileira Lygia Clark (1920-1988) aos americanos, na grande retrospectiva promovida pelo MoMA de Nova York, em agosto de 2014, o curador venezuelano Luis Pérez-Oramas combateu a esquemática narrativa de que seu trabalho possa ser dividido em fases, mais exatamente entre a arte formalista dos anos 1950 e as experiências radicais posteriores a 1963, quando Lygia apresentou o embrião de um experimento, Caminhando (uma fita de Moebius recortada até seu limite). Contrariando a ideia de que Lygia havia “abandonado” a arte, Pérez-Oramas diz que ela jamais fez isso. Seu processo, ao contrário, foi o de unir arte e vida. Não houve fratura entre duas personas estéticas, segundo o curador, mas o reconhecimento de que se deu a evolução de um “repertório de formas para um repertório de proposições”.
O grande desafio de fazer uma mostra que leve em conta a ideia do trabalho de arte como um “ato”, depois da retrospectiva do MoMA, é justamente o de associar as ações experimentais desenvolvidas por Lygia depois de 1963 e as pinturas dos anos anteriores. O marchand Max Perlingeiro aceitou o desafio. Passou um ano pesquisando toda a obra de Lygia Clark para selecionar 100 peças que possam deixar transparente ao público os passos da experiência existencial de uma artista que pensou sua atividade como uma construção ética. O resultado é a mostra Lygia Clark 100 Anos, que será inaugurada no dia 23, na sede carioca da Pinakotheke Cultural, em conjunto com a associação cultural O Mundo de Lygia Clark, responsável pela catalogação de sua obra.
A exposição deveria ter sido inaugurada no ano passado para marcar o centenário da artista, mas a pandemia atrapalhou os planos. Em contrapartida, houve mais tempo para pesquisar. Foram localizados trabalhos e documentos inéditos, entre eles um texto do teórico e historiador de arte argelino Yve-Alain Bois, que conheceu Lygia Clark nos anos 1960, em Paris, tornando-se seu amigo. Esse texto integra o livro que Max Perlingeiro prepara com imagens inéditas, entre elas fotos de Alécio de Andrade (1938-2003) da performance Arquiteturas Biológicas II, que Lygia Clark criou em 1969, no Hôtel d’Aumont, em Paris, onde morou.
A mostra segue uma cronologia, desde as pinturas figurativas dos anos 1940 até os chamados objetos relacionais (1968-1973). Entre os principais momentos, estão Kleemania (1952), marcado pela influência do suíço Paul Klee, Quebra da Moldura (1954), em que Lygia propõe a criação de outro espaço fora do quadro tradicional, Superfície Modulada (1955-1956), Espaço Modulado (1958), Contra Relevo (1959), Casulo (1959), Bicho (1960-1964), Obra Mole (1964) e Trepante (1965). Cada um desses segmentos é explicado ao espectador nos textos de parede escritos pelo crítico Paulo Herkenhoff.
De todas as criações de Lygia, a mais popular é o Bicho, nome que ela deu em função de suas características “fundamentalmente orgânicas”, segundo a artista. O Bicho é formado por placas de metal polido, unidas por dobradiças, que se articulam em múltiplas combinações matemáticas. A rigor, não se pode considerar os “bichos” como esculturas, pois eles são mais objetos híbridos em estado transicional, como bem classificou essas peças o crítico Mário Pedrosa.
“Trouxemos para a exposição os maiores ‘bichos’ que Lygia produziu fora da coleção Guy Brett”, anuncia Max Perlingeiro, que estava produzindo um livro sobre o crítico inglês quando ele morreu, em fevereiro deste ano. Brett foi o crítico que promoveu na Europa nomes fundamentais da arte contemporânea brasileira (Lygia Clark, Hélio Oiticica, Mira Schendel), organizando exposições na Signals, fundada por Paul Keeler – os “bichos’ foram exibidos na galeria londrina em 1965.
Parte da correspondência de Lygia Clark com Guy Brett e artistas amigos (Oiticica, Sérgio Camargo, Franz Weissmann) será publicada no livro que registra a exposição. São reproduções dos manuscritos – “sem censura”, acrescenta Perlingeiro. Além das cartas, o livro virá com a última entrevista concedida por Lygia ao jornalista e editor Matinas Suzuki Jr. e ao artista construtivo cearense Luciano Figueiredo. Um cuidadoso trabalho de recuperação do áudio vai permitir que os visitantes da mostra ouçam a voz da artista explicando, por exemplo, seus objetos relacionais – que estimulam no participante a autopercepção e a consciência de seu corpo, trabalho posteriormente usado em terapia.
Lygia Clark muito cedo se interessou pela ideia do espectador participante e também pela arte terapêutica, tomando contato com o trabalho da médica Nise da Silveira com os internos do Engenho de Dentro. Vinda de Belo Horizonte, de uma tradicional família de juristas, ela fez esforços enormes para se libertar de sua formação burguesa ao chegar ao Rio e se dedicar à arte sob orientação do pintor e paisagista Burle Marx (em 1947). Algumas de suas pinturas mais antigas estão na mostra da Pinakotheke carioca, que será montada em São Paulo em novembro de 2022.
Segundo o citado texto do argelino de Yve-Alain Bois no futuro livro sobre ela, Lygia manteve apenas contatos limitados com o mundo da arte depois da 34ª Bienal de Veneza, em 1968. “Seu exílio voluntário não foi meramente geográfico: ela havia deixado a tradicional terra da arte para propor outro modelo de comunicação estética”, conclui Bois.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.