Mostra reúne obras e monólogo para expor complexidade de Lygia Clark

21/04/2022 07:00
Por Ana Lourenço / Estadão

Quem vê por fora, não consegue entender o diferencial de Lygia, a nova exposição da galeria Bolsa de Arte. À primeira vista, não existe nada muito novo em paredes brancas que expõem quadros alinhados e algumas esculturas abstratas de metal espalhadas pelo piso. Mas basta esperar o momento certo para acessar a divisória preta escondida no final do corredor e, quase como uma metáfora, acessar o íntimo e toda a profundeza da artista Lygia Clark.

Mineira, nascida em 1920, Lygia é considerada a fundadora do neoconcretismo, mas muito mais do que isso, ela foi marcante por fazer da arte uma terapia. Muito mais do que um objeto de apreciação, a obra, para ela, era sentimento e, por isso mesmo, não existia sem um espectador ou, no caso, um sentimental. Assim, Lygia propõe a desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador para com os objetos expostos, uma vez que ele passa a compartilhar essa criação.

Na exposição-performance, porém, criada por Maria Clara Matos e Bel Kutner, a interação com o público é levada a outro patamar. “O monólogo é um convite ao vasto mundo interior desta mulher. Seus sonhos, suas dores, suas alegrias. Não da artista plástica, não da terapeuta, mas da Lygia, pura e simplesmente. Alguém que fez dos próprios abismos o caminho de contato com o outro”, conta Maria Clara.

Em uma primeira parte, a exposição com curadoria de Felipe Scovino traz obras desde os primeiros anos de sua trajetória artística até o período neoconcreto (1958-1961). Lygia acreditava no autorretrato do artista pela própria obra e isso é perceptível quando o tradicional silêncio das galerias de arte é rompido pela voz potente de Carolyna Aguiar. A atriz que interpreta Lygia imerge totalmente o espectador no mundo da artista graças a sua entrega e dedicação durante o monólogo que complementa a mostra.

Suas falas são baseadas nos diários da artista e contam desde suas frustrações com o mundo e a arte, morte, angústias e amores até as coisas banais do dia a dia, como um jantar com o filho Álvaro. A ideia, segundo as criadoras, é realmente explicar para o visitante como era essa vida que inspirou a arte e criar um diálogo com as obras originais expostas.

ÍNTIMO

O ambiente convidativo com uma mulher sentada numa cadeira, ao fundo, escutando conchas. Ao seu lado, um carrinho de chá clássico com um copo de whisky e cigarros acima. Não está em um palco, mas sim em um pequeno espaço para a movimentação e cadeiras e pufes espalhados ao redor, como se entrássemos na casa da artista.

“Eu já morri, mas vocês são muito bem-vindos aqui na minha cabeça. Hoje, vocês vão ser minha linha orgânica, minha superfície modulada”, diz a atriz, dando início à peça de 1h15. Não são necessários nem 5 minutos para perceber como ali era um lugar intenso.

Há quem diga que Lygia Clark foi uma mulher à frente de seu tempo. Sua vida, interessantíssima, foi preenchida com viagens, amores e mergulhos no desconhecido. Era intensa em tudo o que fazia e por isso mesmo suas obras são tão complexas. Para ela, arte era sentir e, para isso, nada melhor do que viver. O princípio é marcante em Estruturação do Self, um tipo de psicoterapia criada por Lygia, que misturava arte e sensações com objetos específicos de sensorialidade tátil. Como sacos de água, areia e outras texturas diferentes.

“Você dá significado aos objetos, você dá significado ao seu corpo e à sua própria vida. Essa é, em síntese, a experiência da Estruturação do Self”, dizia ela. Na performance, a atriz escolhe pessoas aleatórias da plateia para participar dessa e de tantas outras experiências.

Outra obra que reforça a discussão sobre as fronteiras da arte e do corpo é a série Bichos, iniciada em 1960. Aqui, ela propõe que o objeto não seja apenas visto, mas também tocado, numa espécie de arte viva, transformando o espectador em coautor da obra.

MERGULHO. A primeira seleção de trechos do diário resultou em um roteiro de 70 páginas. E foram necessários mais quatro meses estudando os escritos mais íntimos da artista para transformar a peça em um texto de 20 páginas. Além disso, era preciso encontrar um lugar ideal: uma galeria de arte que permitisse realçar a ideia de Lygia estar conversando com as paredes e entrando na direção do corpo.

“Junto com os diários a gente também fez várias entrevistas com pessoas próximas e o Lula Vanderlei, que foi a última pessoa que entrevistei, falou: “A Lygia são os olhos. Nunca vi olhos tão fortes em toda a minha vida. E eu acho muito lindo a gente poder falar dela agora, quando vivemos num lugar das concessões. De abrir mão, onde tudo é mais ou menos. Com ela é para sair da estereotipia. Ela não fez concessão em nada na vida. E eu fico muito feliz e honrada de estar levantando essa bandeira, porque acho que as pessoas precisam disso. A gente está vivo e a vida é pá pum. Não temos tempo para ficar meio morto, mais ou menos, é urgente!”.

A desconstrução da ideia da obra de arte como algo intocável é feita junto com a ideia que temos da artista. Depois de descobri-la expansiva, dramática e imprevisível, temos a sensação de que aquela pessoa retratada somos nós ou pelo menos uma amiga próxima.

A sala se faz pequena com a movimentação da atriz, que faz questão de caminhar para cada cantinho, olhar no olho do espectador e tirá-lo da contemplação passiva. Ao final, a atriz caminha para uma mesa solitária no fundo da sala e deixa a voz de Caetano Veloso, na música If You Hold A Stone – escrita para a artista pelo cantor em 1971 – invadir a sala enquanto as luzes se apagam.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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