Na fronteira do erudito com o popular, o som de João Ventura
João Ventura fazia compras em um dos muitos mercadinhos chineses de Lisboa quando o celular tocou. Segurando panos de prato com uma mão, ele atendeu com a outra: “João, tudo bem? Aqui é a Madonna. Você gostaria de tocar comigo em Nova York?”. Sergipano de Aracaju, de 36 anos, pianista clássico que fazia doutorado em Portugal, ele nem sequer falava inglês com fluência. Chamou um amigo para ajudá-lo e entendeu o chamado. Madonna, que o vira tocar dias antes em um bar à beira do Rio Tejo, o Tejo Bar, queria o pianista a seu lado em uma apresentação no Baile de Gala do Metropolitan Museu, em Nova York. Ele foi, e a vida mudou.
Isso foi em 2018, quando muita gente ficou sabendo de João pela primeira vez. Até ali, sua presença ao lado de Madonna, que o teria como um dos músicos mais respeitáveis que passaram por seus projetos, valeu pelos holofotes. Agora que João está prestes a se apresentar em São Paulo, antes de retornar a Portugal, talvez seja a hora de saber o que de fato levou Madonna a chamar um brasileiro que não estava tocando bossa nova nem samba para estar a seu lado. A resposta a essa curiosidade é impressionante.
A linguagem desenvolvida por João dentro de um trabalho chamado Contrapontos (não confundir como o sistema de contrapontos de autores eruditos como Bach) existe nos limites do que entendemos como sendo música popular e música clássica. Ele escolhe uma canção popular extremamente conhecida e a acomoda sobre uma peça erudita também conhecida. Ou seja: toca a peça ao piano e canta a música ao mesmo tempo.
A mágica acontece com ligeiras adaptações harmônicas, como se uma tivesse nascido para a outra, e, assim, Garçom, de Reginaldo Rossi, se encontra com O Voo do Besouro, de Rimsky-Korsakov; Iracema, imortalizada por Adoniran Barbosa, se encaixa em Nocturno, de Chopin; terceiro movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven, se entrelaça com Insensatez, de Tom Jobim; e Dia Branco, de Geraldo Azevedo, desliza sobre Arabesque n.º 1, de Claude Debussy.
QUATRO DIAS. Ao ouvir isso, Madonna fez suas encomendas: queria contrapontos sobre as suas Like a Virgin e Like a Prayer, e também Let It Be, dos Beatles. “Eu levo, em geral, quatro meses para criar uma obra dessas. Ela me pediu para fazer três em quatro dias”, lembra João. “Ela me perguntou se era possível e eu disse: ‘Claro que é'”, sorri hoje da própria insanidade. Um dos resultados mais certeiros foi Let It Be unida a Ave Maria, de Gounod, e outro que sairia em tempo real: “Você pode fazer algo aqui mesmo usando Hallelujah, de Leonard Cohen?”, desafiou Madonna, no dia do primeiro encontro. E João deixou fluir sobre, ou sob, a canção a peça Pour Elise, de Beethoven.
Não seria nada de mais a proposta do popular com o erudito não fosse feita por João nas regiões de fronteira, onde as grandes guerras acontecem. Em vez de diluir as diferenças, como a história da música conhece quando cita os gênios incontidos de Astor Piazzolla, Villa-Lobos, Tom Jobim, Duke Ellington, Nina Simone, Franz Lizt (ao adaptar as rapsódias húngaras) e, nas profundezas, a essência extremamente próxima de Johann Sebastian Bach, Contrapontos faz com que uma se choque com a outra para que também a complemente.
EXPERIÊNCIA. Mais do que acessar uma emoção, ele propõe uma experiência. “É como se um pianista erudito estivesse acompanhando um cantor popular. A diferença é que os dois são a mesma pessoa”, diz.
Mas, afinal, dentro de um mundo extremamente rígido, onde as regras e as notas musicais são talhadas em pedra, qual a percepção do que João Ventura faz quando deita Reginaldo Rossi sobre o russo Korsakov? Ele diz ter sentido estranhezas, entremeadas com elogios. “Ouvi muito coisas do tipo, meu Deus, que impressionante. Por que não pensaram nisso antes? Mas também alguma desconfiança. Acredito que as pessoas entenderam que quem estava fazendo isso não era um aventureiro iniciante, mas alguém que estava ali estudando muito.”
O show que João Ventura fará em São Paulo será nesta segunda, dia 25, às 20h, no Blue Note. Seu repertório será com contrapontos a respeito da obra de Chico Buarque. Ele vai contar com a participação da violonista e cantora Badi Assad e mostrar canções como Tatuagem, Trocando em Miúdos, Eu te Amo e Folhetim. Depois, em 24 de outubro, se apresenta no Teatro B32, com a Orquestra de Heliópolis.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.