Nanini recicla memórias no reencontro com Gerald Thomas em ‘Traidor’
No centro do palco do Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana, fica um trono como aqueles ocupados por um rei ou, quem sabe, um esquizofrênico que imagina deter algum título de majestade. Na verdade, trata-se de uma cadeira de rodas que serve de efeito cênico para as movimentações do ator Marco Nanini, de 75 anos, nas quase duas horas do espetáculo Traidor, que estreou no sábado, dia 18.
Escrito e dirigido por Gerald Thomas, de 69 anos, o trabalho marca o reencontro da dupla 18 anos depois do sucesso de Um Circo de Rins e Fígados (2005) e começou a ser pensado ainda na pandemia – quando não estava fácil para ninguém.
Às vésperas da estreia, Nanini anda incomodado com o tal do trono. “Gerald, você precisa marcar o tempo em que fico sentado ou de pé porque senão me levanto, me entusiasmo, falo demais, fico exausto”, reclama. Com a intimidade dos bons amigos, o encenador desanuvia a preocupação do protagonista com um sorriso. “Isto não é para virar um problema, Nanini, você fica sentado o tempo que quiser e se levanta quando bem entender, até porque foi você mesmo que me pediu”, avisa o diretor.
O que parece uma conversa de malucos, típica das dramaturgias de Thomas, tem explicação. No confinamento pandêmico, Nanini sentiu o tempo e o seu corpo pesarem. “Eu me considerava um garoto até uns cinco anos atrás e, de repente, entendi que era um senhor, envelheci.”
MILAGRE DO PALCO. Duas vértebras quebradas no fim da década de 2010 voltaram a doer, a bebida e o cigarro cobraram a fatura e, na balança, ele ultrapassou os 103 kg. O fôlego se evidenciava curto e, nas primeiras conversas sobre Traidor, Nanini sugeriu a criação de algum artifício para que não precisasse ficar de pé o tempo todo. “Sim, ele reclamava de dor, mas foi só esquentar os ensaios que vi uma transição dele para a juventude – e para isso não tem remédio ou cirurgia plástica, é o milagre do palco”, define Thomas.
Nanini sabe que não é só isso. Ele começou a praticar rigorosamente pilates e fisioterapia, deixou de beber, de fumar e roer as unhas e cortou a carne do cardápio. “Sabe que, no passado, eu fugia no meio dos ensaios para comer hambúrguer nos fast-foods?”, entrega. “Hoje só como ovo e bebo leite em produtos que não vejo, como o sorvete que tomo todas as noites, já que não janto mais para não engordar”, revela o ator, agora com 95 quilos, nada mau para o seu 1,82 m.
Thomas observa com deboche a descrição da dieta do amigo e avisa que não existe nada melhor para a boa forma do que uma rotina de natação. Nanini confessa que adora olhar as piscinas, mas não gosta delas, dá umas braçadas e se afoga. “Então, é porque você não sabe nadar, ora…”, rebate o encenador. E nessa conversa, como dois velhos compadres, o espetáculo Traidor demora a voltar à tona.
O personagem principal também se chama Nanini, é definido por Thomas como “a soma de todos os atores” e, logo, se assume como um esquizofrênico diagnosticado. Isolado, ele delira sobre assuntos aleatórios, da guerra entre Israel e Hamas até a crise climática, passando por referências a Shakespeare, Samuel Beckett e Franz Kafka.
Entre o humor e a tragédia, Nanini, o personagem, tem a mente povoada por seres estranhos e pensamentos desconexos, representados pelos atores Apollo Faria, Eder dos Anjos, Hugo Lobo e Wallace Lau e pela voz em off da atriz Fabiana Gugli, sua diretora imaginária, o alter ego de Thomas.
ÂNIMO. Em fevereiro, o lançamento da sua biografia, O Avesso do Bordado, escrita pela jornalista Mariana Filgueiras, lhe trouxe um ânimo que começara a ser desenhado no ano passado com a participação na série Sob Pressão, do GloboPlay, e o protagonismo de João Sem Deus – A Queda de Abadiânia, produção do Canal Brasil sobre o médium acusado de abuso sexual. Nesse embalo, as trocas com Thomas por e-mails e chamadas de vídeo – um em New Paltz, perto de Nova York, e outro no Rio – também ganharam frequência. Empolgado com a produção de Traidor, o ator também quis ver o que rolava nos teatros cariocas. Aplaudiu a atriz Cláudia Abreu no monólogo Virginia, a revelação Rafaela Azevedo na comédia King Kong Fran e a montagem de Uma Mulher ao Sol.
“Os teatros estão cheios e isso me entusiasma, me dá vontade de sair de casa, apesar de ficar triste com a pobreza que enxergo nas ruas”, observa o ator. “Passar pelo Parque Trianon, aqui em São Paulo, me dá uma depressão pela quantidade de barracas e famílias.”
Gerald Thomas suaviza o assunto e lembra que o público voltou a procurar os teatros porque não aguenta mais as telas das redes sociais ou do streaming. “Ah, eu só procuro o Instagram para ver fotos de natureza, bichos e crianças, as três coisas que mais gosto, tenho preguiça de publicar, até me esqueço”, diz Nanini.
Como deixou de confiar na memória há algum tempo, o ator abraçou um dos maiores preconceitos da classe artística: o uso do ponto – o que lhe permite não se preocupar em decorar os textos. “Isso facilitou muito a minha vida”, assume o intérprete. Thomas, como diretor, não se preocupa: “O ponto não indica qualquer caminho de interpretação, quem define isso é o artista. E que artista temos aqui, não é?” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.