Não analises

30/01/2019 11:00

Em “Anima’, de Milton Nascimento, surge, espremida no final do lado B, a vinheta em espanhol. “Si quieres ser feliz, como me dices, no analices, no analices”. Foi imediato o impacto do falsete do grande cantor mineiro. Eu, que sempre tentara me cultivar racional, analista e lúcido, senti um dedo na ferida. Porque, sim, a reflexão exacerbada pode ser fonte de angústia e desilusão. Desnuda encantamentos. Num pôr do sol, eu posso apreciar a fogueira acesa por anjos, sonhar a morte do dia que ressurgirá aurora. Mas posso quebrar a poesia analisando fenômenos óticos que, a física explica, fazem a dispersão da luz nas moléculas do ar. O vermelho alaranjado é apenas fruto da incapacidade do olho humano perceber o violeta, a luz mais intensa no fenômeno. Ou seja, o crepúsculo é nada mais que uma certa cegueira. Análises assim matam a poesia e o romance, apequenam a felicidade. Daí o clamor de Clarice Lispector: “Oh, porque você fala em coisas difíceis, porque empurra coisas enormes num momento tão simples, me poupe, me poupe”.

A tal sábia vinheta é trecho do poeta Joaquín Bartrina, catalão do século XIX. O poema inteiro, em minha tosca tradução: “João tinha um diamante que valia, e, por querer saber o que tinha, a química estudou, e ébrio, anelante, analisou o diamante. Mas, oh, que horror!… Aquela joia bela, lágrima sob o olhar de alguma estrela, falou, com raiva e com rancor profundo, que era só um pouquinho de carbono. Se queres ser feliz como me dizes, não analises, rapaz, não analises”.

Na peça de teatro em que Nathalia Timberg viveu a psicanalista Melanie Klein, há um momento em que sua filha revela a revolta com o hábito materno de analisar os próprios filhos, como pesquisa para suas teorias. Muitos pais da psicanálise adotaram essa perigosa prática. Mas mesmo nós, em relacionamentos corriqueiros, fazemos isso. É destrutivo. Quebra o encanto sem o qual o amor não vive. Ao se colocar como analista de quem ama, você institui uma hierarquia que semeia a destruição do afeto. Às vezes é só defesa dos nossos defeitos, pôr no outro a raiz dos problemas, o objeto a ser “curado”, na crueldade de reduzi-lo de diamante a carbono. 

Veja. A razão é benção que não pode ser desprezada. Devemos analisar. Mas sem obsessão. Pois há obstáculos que só a intuição pode superar. Muito do conhecimento humano não veio da razão, mas da intuição. Antes de microscópios, o grego Demócrito intuiu a existência do átomo. Só depois filosofou, pondo a razão a serviço da intuição. Artistas normalmente dominam a racionalidade da técnica aprendida. Mas a obra imortal acontece quando a intuição rompe a técnica. Mabe, Picasso, Pollock, atuaram com a intuição. A técnica que lhes corresse atrás. 

Sofremos demais porque analisamos demais. Não é que não seja saudável saber a origem dos nossos problemas e aonde nos levam. Mas a energia gasta nisso pode fazer infelicidade. Gostamos de complicar. Queremos a razão redentora, que nos revele tudo. Acabamos vencidos e magoados porque jamais entenderemos tudo e todos. A intuição – que é um tipo de afeto – é libertadora. Nos permite viver a vida, aceitar o outro, enfrentar o agora, gozar o dia, agradecer a benção da aurora. Permite amar. Se nos assentamos sobre problemas a analisar culpas e consequências, de maneira inerte e exaustiva, bloqueamos o bem viver. Problemas da vida a gente enfrenta é vivendo. Com o cérebro, quando der. Com o coração, todo o tempo.

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