“Não devemos naturalizar o que não é natural”, diz pesquisador da UFRJ sobre tragédias em Petrópolis

28/02/2022 08:32
Por Vinícius Ferreira

O maior desastre socioambiental da história de Petrópolis, que já conta com mais de 200 mortes e quase 6 mil desabrigados e desalojados, mostrou o quanto a cidade está vulnerável aos fenômenos naturais. O registro recorde de 256,4mm de chuva em menos de 24h (três horas) está longe de explicar porque a cidade sofreu tanto com o fenômeno climático. Especialistas, que há décadas estudam as encostas e bacias hidrográficas da cidade, são enfáticos ao afirmarem que há uma naturalização dos fenômenos que ignoram a interferência humana.

“Será que é um evento natural? Se a gente separar de uma maneira bem simples o evento meteorológico e as características da paisagem, a gente vai perceber que a ação humana tanto na escala global quanto na escala local aqui do município de Petrópolis atuam diretamente para que esses eventos se tornem cada vez mais frequentes e com magnitudes cada vez maiores”, ressalta Manoel do Couto Fernandes, que é professor adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e vice-coordenador do GEOCART (Laboratório de Cartografia do Departamento de Geografia da UFRJ).

Em 2019, pesquisador, que atua na área de Geociências, com ênfase em Cartografia, Geoecologia e Geoprocessamento, e orienta alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, publicou, em conjunto com os pesquisadores Kairo Silva e Fernando Antunes, o estudo “The Rivers, The City and the Map as Object of Landscape Dynamics Analysis” (Os Rios, a Cidade e o Mapa como Objeto de Análise da Dinâmica da Paisagem), que teve como objeto de estudo os rios da cidade de Petrópolis, o Piabanha, o Palatino e o Quitandinha. O levantamento, estabeleceu uma comparação dos registros históricos e a realidade atual, as mudanças ocorridas nos três principais rios que cortam a área de gênese da cidade, estabelecendo uma comparação com o “Planta de Petrópolis – 1846”, também conhecida como Planta Koeler (1846), criado pelo major Júlio Frederico Koeler, responsável pelo planejamento de Petrópolis.

“Os dados dos quais tratamos são resultados de nove anos (entre 2011 e 2018) de levantamento sobre as inundações sofridas pela cidade de Petrópolis. Nesse período, a média de chuva, no mês de fevereiro, é de 150mm. E eles apontam que uma chuva de 20mm, em um intervalo de 15 a 30 minutos, causa inundação na bacia do rio Quitandinha. Nesse período, 93% dos eventos de inundações, provocados pelas chuvas, aconteceram na bacia do rio Quitandinha (5,8% na do rio Palatino e 1,2% na bacia do Piabanha). Foram 89 eventos só na bacia do Quitandinha. Nas três bacias, 75% da área não é edificada, é de matriz florestal, mas é densamente povoada em espaços reduzidos. Essa área do primeiro distrito hoje concentra 17% da área do município e nesse espaço se concentra 62% da população. Atualmente, tem cerca de 300 mil habitantes. Essa ocupação se reflete muito no uso e ocupação da terra”, explica o pesquisador.

Mudanças não previstas no plano original

Quando planejou a cidade, Koeler delimitou uma ocupação de 2% de todo o território do município (12% do primeiro distrito). Ele sabia que a cidade se formaria na área onde se concentra a maior possibilidade de inundações. “Mas, já no século XIX, construiu algo parecido com o que a gente conhece hoje como ‘piscinões’. Eram tanques de armazenamento, de concentração de enchentes, o que vimos relatado em reportagem no jornal O Mercantil, de 1846, como identificado pelo pesquisador Flávio Menna Barreto. Ou seja, os eventos que causam inundações não são de hoje, mas eles têm sido naturalizados”, avalia.

Com o passar dos anos e com o crescimento da cidade foram poucos os projetos que visualizaram a redução do impacto das enchentes. O mais importante deles foi a criação do túnel extravasor, que desvia parte do fluxo do rio Palatino para a bacia do Itamarati. Uma resposta tardia às enchentes com as quais a cidade já havia sofrido na Rua do Imperador nas décadas de 30, 50 e 60. O trecho, no coração do Centro Histórico, é onde os Rios Palatino (que vem do Alto da Serra) e Quitandinha se encontram e seguem para desaguar no Piabanha e mais adiante (na cidade de Três Rios) no rio Paraíba do Sul.

Não só Petrópolis apresentou poucas soluções para o problema crônico das enchentes, como ainda causou alterações ao longo de seus 179 anos que corroboraram para agravar o problema. “A modificação do sistema fluvial do município, com a supressão de ilhas e alteração da morfologia original dos canais tem relação direta com os eventos de inundações na cidade. A cartografia histórica mostra que houve supressão de ilhas e redução dos canais, desde a fundação do município, 1843”, afirma Manoel.

Nos estudos da planta original da cidade o pesquisador identificou diferentes pontos dos rios onde existiam “ilhas fluviais”, grandes afloramentos de rochas no leito do canal. “Evidências de que a largura dos canais era muito maior do que a gente conhece hoje. Existiam duas na bacia do Quitandinha (uma delas na Rua Coronel Veiga, no trecho onde os alagamentos são mais frequentes), uma na bacia do Piabanha e uma do Palatino. Em frente à antiga fábrica São Pedro de Alcântara está a localização da segunda ilha na bacia do Rio Quitandinha. Neste local, onde parte da Rua Washington Luiz foi levada na enxurrada do dia 15, é possível ver hoje vestígios de muros que mostram a redução do tamanho do canal original”, destaca.

O estudo apontou ainda que a bacia do Quitandinha tem quase metade de sua área edificada e uma capacidade de drenagem mais baixa do que as outras bacias. O Rio Quitandinha teve uma diminuição de sinuosidade considerada muito grande (-2,44) e o Palatino também, ao contrário do Piabanha. “Um rio menos sinuoso faz com que a água ganhe mais energia cinética. A velocidade da água é muito maior. Houve não apenas a redução da sinuosidade, mas também o estreitamento dos rios, quando a gente compara dados de 1846 a 1999”. 

Mudança nos planos originais também impactaram na ocupação dos morros

O que foi planejado no século XIX se perdeu ao longo tempo e a ocupação desordenada dos morros, especialmente no primeiro distrito, é outra evidência. O Plano do Koeler estabeleceu uma série de regras para a ocupação da cidade, como uma espécie de código de obras. Previa áreas urbanas que eram as Villas Imperial (Centro Histórico atual) e a Villa Theresa (onde está a Rua Teresa atual, na bacia do Palatino). “As demais áreas foram destinadas para a construção de um cinturão verde. Petrópolis foi pensada inicialmente para a construção de uma colônia agrícola que abastecia o Palácio Imperial. Koeler trazia muitas ideias do período iluminista europeu, com uma série de inovações na arquitetura, na morfologia urbana, diferente das demais cidades brasileiras, baseadas na arquitetura portuguesa da época”, informa o pesquisador.

No plano original de Koeler, os Prazos de Terra (“lotes”) nunca poderiam ser divididos na horizontal, apenas verticalmente, justamente para que fosse evitada a ocupação de áreas com maiores declividades em direção aos topos de morro. “Hoje, essa região do primeiro distrito está cheia de escadarias e servidões. Um levantamento de um estudo de mestrado contou com 811 servidões e 841 escadarias”. Essas escadarias e servidões serviram como linhas de fluxos de detritos no evento do dia 15, como pode ser constatado em vídeos de carros sendo arrastados e fluxos de lama ao longo das ruas, servidões e escadarias que servem como acesso às áreas de maior declividade.

Qual a solução?

“O que fazer? Muitas medidas urgentes que envolvem a recuperação da qualidade vegetacional (requalificação), políticas habitacionais com realocação de famílias (oferecendo serviços públicos. Não só realocar e sim promover qualidade de vida para essa população). Além disso, fazer cumprir as regras de uso da APA Petrópolis, uma LUPOS revisitada e com fiscalização séria, obras de engenharia nas encostas e no canais para evitar enchentes. Também é necessária a qualificação dos serviços municipais com profissionais que possam atuar nessas medidas (geólogos, geógrafos, urbanistas, engenheiros) visando a construção de uma cidade inteligente apoiada em soluções tecnológicas e possibilitando um desenvolvimento sustentável”, pontua o pesquisador.

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