‘Não posso fazer da miséria uma beleza’, diz Mahamat-Saleh Haroun

25/04/2022 08:16
Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão / Estadão

Um dos principais cineastas do Chade, com uma filmografia que vai do folhetim ao registro documental, Mahamat-Saleh Haroun ganha retrospectiva online na plataforma Mubi, que começa com seu mais recente longa-metragem: Lingui, The Sacred Bonds. Indicado à Palma de Ouro em 2021, o filme está disponível na plataforma Mubi, assim como O Homem Que Grita (Prêmio do Júri em Cannes, em 2010).

Premiado em festivais em Hamburgo e Turim, Lingui acompanha a batalha da mãe solteira muçulmana Amina (Achouackh Abakar Souleymane) para sustentar sua filha adolescente, Maria (Rihane Khalil Alio), de 15 anos. Quando Amina descobre que Maria engravidou e está decidida a abortar, as duas entram num choque, que passa por conflitos de cultura, tradição, fé e amor – o materno e o filial.

Mas, nesse processo, mãe e filha estreitam uma conexão mais forte do que qualquer outra que já viveram. Na entrevista a seguir, concedida ao Estadão via Zoom durante o fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, Haroun, que produz seus longas a partir de Paris, explica as licenças poéticas que tomou para retratar a condição feminina, a partir de uma preocupação autoral com a miséria de seu país.

Neste filme sobre maternidade, qual é o ideal de mãe que o senhor constrói e projeta a partir da realidade social chadiana?

Um olhar que vá além das bases do melodrama, capaz de driblar as possíveis ligações diretas que esse enredo possa estabelecer com as memórias da minha mãe, em minhas vivências pessoais, abrindo uma reflexão dupla sobre aceitação e responsabilidade. O corpo é um direito de cada um. Há uma mulher, numa sociedade muçulmana, que aprende a responsabilidade de decidir o que fazer com seu corpo, diante da vontade de abortar. E há uma outra mulher, numa cruzada de aceitar o desejo dessa jovem que toma suas próprias decisões. Para essa dicotomia parar de pé, eu preciso retratar a força da mulher, sobretudo em um contexto social de exclusão, de pobreza.

O senhor diz que tenta se afastar do melodrama, mas vários códigos do filão estão presentes em sua narrativa. Como driblar as convenções do gênero?

Existe a miséria ao meu redor. Venho de uma África pobre. Pertenço a um país africano em que, durante anos, fui o único diretor de ficção. Há pobreza. É uma convenção do melodrama se interessar por esse contexto social. E, nisso, nós, eu e o folhetim estamos numa mesma estrada. Mas eu tenho um cuidado de não banalizar a condição de quem é miserável, de não fazer com que o espectador se deslumbre por ela. Não posso fazer da miséria uma beleza.

O senhor é visto como um herói no continente africano por sua resiliência em ter buscado meios de filmar em um país onde o cinema era uma atividade inexistente, tendo estimulado gerações de cineastas negras e negros a rodar seus curtas e longas. Que retorno o senhor tem de jovens do Chade ou de outros países da África que debutam no cinema?

É sempre uma honra saber que você impulsiona a juventude, mas eu evitaria a palavra “herói”, principalmente para mim, que tento ser politicamente engajado em causas humanitárias. O mundo não precisa de heróis. O mundo precisa de pessoas comuns que se empenhem, em sua dificuldade cotidiana, a respeitar o próximo, a fazer bem ao outro. Há muita gente filmando na África. Mas, no Chade, o meu trabalho não foi suficiente para que a gente pudesse ver nascer uma indústria. Fizemos filmes, ganhamos prêmios, mas não somos subsistente de maneira autônoma, dependendo do apoio das TVs da França para rodar.

Mas essa “dependência” limita sua liberdade?

Quando o cinema é pautado pela coragem, não. Eu resolvi encarar a questão muçulmana em Lingui, ciente de que era um tema delicado, mas sob a perspectiva da vivência feminina, da experiência materna, sem ferir credos. Quando se explora um tema como esse com desejo e com responsabilidade, as soluções aparecem. Eu comecei a filmar o Chade a partir de uma experiência como estudante na França dos anos 1980 e 90. Era um mundo sem a extrema direita avançada de hoje. E é nessa liberdade que acredito.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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