Não viver em branca nuvem
Menino, escrevi poema que descrevia alguém que, de tão inerte, chegava para prestar contas ao Criador, e nada tinha a oferecer a não ser “o pedaço de chão que envelheceu sob seus pés”. Gente que nunca ousou, nada fez, não se doou a nada. Na juventude ouvi alguém às gargalhadas numa rodinha. Falavam de mim, que, diziam, estava sempre atrás de alguma causa para lutar. Não levei a mal. Tinha mesmo receios de me tornar o personagem do meu poema.
A disposição de fugir da inutilidade foi reforçada na escola pelo poema de Francisco Otaviano. “Quem passou pela vida em branca nuvem (…) Só passou pela vida, não viveu”. E pelo Eclesiastes. “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o, conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde vais, não há obra, projeto, conhecimento, nem sabedoria alguma”. Então, estive em empreitadas muitas. Subi favelas para evangelizar. E para politizar. Preguei a bêbados nas praças e a loucos, no sanatório. Falei a multidões em ginásios de cruzadas religiosas, e em ginásios de assembleias sindicais ou comícios políticos. Organizei panfletagens, colagens, greves e carreatas.
Sempre fui tímido. Mas um mestre, o hoje pastor Nilton de Souza, me ensinou atalhos para poder proclamar o que me ia ao coração. Com doze anos, aprendi a organizar ideias, classificá-las, priorizá-las, hierarquizá-las, até proferi-las. Continuo tímido. Mas quando mensagem há a entregar, sigo as lições do antigo mestre.E se dizer é uma missão, e proclamar é ato de nobreza, aprendi que mais forte que a palavra é o bom agir. Pode ser melhor causa carregar as sacolas de alguém, lavar sua cozinha, recolher seu lixo, transportá-lo ao médico.
Dizendo assim, pode parecer que me enalteço. Não. Porque falho, erro, me canso, às vezes me omito. Sou normal. Como tantos, posso preferir uma tarde ao sofá assistindo inutilidades divertidas. Já me acovardei. Já me cansei. Já houve ocasiões de desistência de um sermão a minutos do horário marcado. Já me ausentei de reuniões importantes. É que às vezes o cansaço chega. Certa melancolia. Porque todo mundo que se doa, precisa se reabastecer.
Por isso é que, esclareço, não sou vocacionado a ministérios. Como prego o Evangelho, muitos me quiseram pastor. Não. Demanda desprendimentos que não possuo. Também me quiseram político hábil a direções partidárias, vereanças, essas coisas. Não. Também não caberiam em mim. E há quem me pretenda monocórdico. Mas não sou. Os que me conheceram militante político estranham o pregador, os que viram o evangelista olham de lado o militante. Não há razão para isso. As coisas se complementam.
Certa vez um militante que me admirava me perguntou se eu acreditava que o socialismo viria em nossa geração. Respondi que não. E nem na seguinte. Ou na outra. Ele se revoltou. Não admitia que militante dedicado como eu “não acreditasse” na causa que, então, proclamava. Expliquei minha visão das coisas. É preciso transformar as estruturas, e aí entra a militância política. Mas é preciso transformar o coração do homem, se não é como meter porcos na sala, e aí entra a militância cristã. Acho que até hoje ele anda inconformado com a resposta. Mas é o que creio. Então, sigo, imperfeitamente, cheio de erros e falhas, deixando insatisfeitos ora os que querem só o militante ou pensador político, ora os que querem só o pregador do Evangelho. Um caminhante. Tropeço, caio, levanto. Tento não viver em branca nuvem.
denilsoncdearaujo.blogspot.com