Narrativa e fato sobre Machado de Assis
Entre os críticos literários da obra de Machado de Assis, é comum ser ressaltada sua visão negativa sobre as elites do Império. Seria crítico das atitudes, comportamentos, costumes e da estrutura social. Inclusive da sociedade escravocrata da época, que queria se modernizar, mas que guardava, como foi dito por um dos detratores, resquícios coloniais com personagens caracterizados pela ambição, desonestidade, tibieza de caráter e egoísmo. Uma visão que, até certo ponto, é a do crítico literário Roberto Schwarz. Mas caberia acrescentar que tais falhas morais acompanham a humanidade desde sempre.
Curiosamente, pouco se fala do que disse Machado de Assis sobre o sistema representativo, que era de seu agrado. E, no mesmo artigo, no Diário do Rio de Janeiro, em 5/3/1867, em que ele acrescenta: “…e peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou.” Esta afirmação revela, claramente, que ele preferia o regime parlamentar monárquico então vigente ao que viria depois de 1889. Dado o que o Brasil é hoje, Machado certou na mosca.
A sabedoria convencional dos críticos incorpora a narrativa da história econômica brasileira consolidada sobre o desempenho pífio da renda real per capita do Império. É como se a economia brasileira tivesse sido congelada no tempo. A responsável seria a elite política do país incapaz de fazer seu dever de casa: abrir espaços para o nosso desenvolvimento. Dá munição para o que foi dito acima de ser ambiciosa, desonesta, tíbia em caráter e egoísta.
Mas não foi isso que aconteceu de fato. Aqui é preciso recorrer a pesquisas recentes na área de economia que nos revelam um quadro positivo quanto ao desenvolvimento do Brasil ao longo do século XIX. E, ainda, ao bom senso, comparando duas variáveis perfeitamente correlacionadas, o crescimento decu-plicado do orçamento do Império, de 1840 a 1890, e a renda real per capita.
Quanto às pesquisas, para ir direto ao ponto, fiz abaixo uma tradução do Abstract da principal delas, de 2019, fornecido pelos autores Edmar L. Bacha, Guilherme A. Tombolo e Flavio R. Versiani, da versão em inglês, de sua reveladora, e surpreendente, conclusão. Ela recebeu o seguinte título e um breve resumo para nos dizer a que veio: ESTAGNAÇÃO SECULAR? Uma nova visão sobre o crescimento do Brasil ao longo do século XIX.
O abstract nos informa o seguinte: “A historiografia econômica consolidada afirma que o PIB real per capita brasileiro estagnou no século XIX, e que ele cresceu muito devagar no período monárquico (1822-1889). Nós contra-argumentamos que estas conclusões estão baseadas em métodos inadequados e em evidência estatística insuficiente. Trabalhando com base na metodologia de Tombolo (2013) e fazendo uso de nova base de dados, nós estimamos que, ao longo do período 1820-1900, a renda real per capita do Brasil manteve uma tendência de taxa de crescimento de 0,9% ao ano, um desempenho semelhante ao crescimento da Europa Ocidental e de outros países latino-americanos na época”.
Vejamos agora a explicação mais direta com base em simples bom senso. E que parece ter escapado aos historiadores econômicos tradicionais. No período de 1840 a 1889, o orçamento do Império cresceu dez vezes contra um aumento populacional que apenas dobrou. Estes números nos revelam que o PIB do Império certamente acompanhou de perto esta decuplicação. Como o crescimento demográfico no período em tela apenas dobrou, é impossível que o rendimento da renda real per capita tenha sido tão pífio.
A conclusão é que o Império foi bem sucedido tanto no plano político como no econômico. No político, por ter preservado a liberdade de expressão e de imprensa e dispor do poder moderador. Ainda que amplo, este teve o mérito de resguardar a população dos desmandos do andar de cima. E jamais foi usado para oprimir o povo. No plano econômico, acompanhou, portanto, o desenvolvimento do resto do mundo na época. Ou seja, a classe dirigente do Império fez o seu dever de casa no que tange ao desenvolvimento do País.
Em tempos ditos republicanos, nada disso vem acontecendo desde a década de 1980. Se adicionarmos a década de 2020, corremos o risco, aqui sim, de continuar a ter um crescimento pífio de nossa renda real per capita por meio século.
É interessante que tanto do ponto de vista literário quanto do econômico tenha havido um erro de avaliação da obra de Machado de Assis. Se, por um lado, ele foi crítico dos costumes e atores da política na época, ele o foi mais ainda quanto ao que acabou vindo depois com a chegada extemporânea da república sem apoio popular. Teve um faro apuradíssimo em relação ao que o País perderia com o fim da monarquia parlamentar.
Pior que o golpe militar de 1889, foi o desmonte do arcabouço político-institucional vigente, que nos proporcionou o que a teoria econômica atual aponta como crucial: a boa qualidade das instituições de um país para lhe garantir crescimento sustentado a longo prazo. A história republicana do Brasil foi uma sequência maléfica de instabilidade política, censuras reiteradas à liberdade de expressão e de imprensa, acompanhada de períodos de ditaduras curtas, como a da Espada (1889-1893) e de duas longas, a civil de Vargas (1930-1945) e a militar de 1964 até 1985.
A lição maior é que o período republicano nos enfiou goela abaixo uma narrativa em que tudo que aconteceu no país, até 1889, tinha que ser apagado de nossa História. Estranho é que as personalidades e atores políticos que foram protagonistas nesse processo de apagão da memória nacional não se tenham se dado conta de que estavam cometendo um crime contra a autoestima do povo brasileiro.
Tudo se passa como se nossa autoestima tivesse que ser reconstruída a partir de 1889. Não foi. O estado a que o País chegou hoje é de desconfiança aguda do povo em seus dirigentes, em especial no STF, na insanidade de levar adiante a ditadura da toga, a pior delas. Mas o beco não é sem saída. A reação da população brasileira vai, aos poucos, crescendo cada vez mais. Mãos à obra.