Nas artes, uma mistura eclética marca o ano zero da modernidade, entre Anita e Goeldi

11/02/2022 09:01
Por Antonio Gonçalves Filho / Estadão

Cem anos depois da realização da Semana de Arte Moderna de 1922 já não cabe mais duvidar do seu caráter de ruptura. Ainda que, durante todos esses anos, as revisões críticas da Semana tenham apontado sua natureza elitista, a “aristocracia tradicional” – como chamava Mário de Andrade seus patrocinadores – abandonou o barco após o escândalo da Semana no Teatro Municipal. A aristocrata dona Olívia Guedes Penteado, para citar mais uma vez Mário, “soube terminar aos poucos seu salão modernista”, deixando seus pupilos à deriva. Cada um seguiu seu caminho: alguns viraram comunistas, outros aderiram ao fascismo integralista e a mais moderna entre os modernos, a pintora Tarsila do Amaral, se reencontrou com suas raízes rurais, ela que foi chamada profeticamente pelo ex-marido Oswald de Andrade de “caipirinha vestida por Poiret”.

Para ficar exclusivamente na área das artes visuais – a que revelou artistas como Tarsila, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Rego Monteiro e outros -, a ressonância do Modernismo e a importância da Semana são inquestionáveis. Se não fosse a ousadia de Tarsila (que não participou por estar em Paris), Oswald de Andrade não teria criado escolas literárias como o Pau-Brasil ou a Antropofagia que, no futuro, deram origem a movimentos como o Tropicalista (anos 1960), ao qual estão atrelados a arte de Hélio Oiticica, a música de Caetano Veloso, o cinema de Glauber e Joaquim Pedro de Andrade e o teatro de José Celso Martinez Corrêa. Em janeiro de 1928, ela presenteou Oswald com a histórica tela Abaporu (hoje no acervo do Malba argentino), obrigando o Brasil a deglutir os restos do banquete visual moderno europeu, rejeitado pela conservadora sociedade brasileira.

Um ano depois, com o crack da Bolsa de Nova York e o preço do café em queda livre, tanto ela como Oswald começaram a sentir os efeitos da crise – e a modernidade, desamparada pelo poder econômico, foi pedir abrigo em outra freguesia. Se Anita Malfatti já fora vítima da incompreensão – inclusive de seus pares, caso de Monteiro Lobato, que criticou o caráter “místico” e “paranoico” de sua exposição de 1917 -, Tarsila se rendeu à estética do realismo socialista, nos anos 1930, deixando a vanguarda no passado. Di Cavalcanti, que começou bem, influenciado por Grosz e Picasso, virou pintor de mulatas, adaptando-se ao gosto burguês contra o qual vociferava em 1922.

ACADEMIA

O movimento modernista foi “destruidor” e autofágico, como definiria posteriormente o escritor Mário de Andrade, em 1942, duas décadas após a Semana. Os modernistas de primeira hora, observou o autor de Macunaíma, não deviam servir de exemplo a ninguém, mas de lição. O “aristocracismo” de cada um dos participantes da Semana os puniu. Não por falta, mas por excesso de reverência ao que vinha de fora: só devoravam antropofagicamente movimentos e estéticas que já estavam “academizadas” na Europa. Palavra de Mário.

Na Semana, existiam muitos artistas bons, mas o critério de seleção dos organizadores era eclético demais: ao lado de um escultor moderno como Brecheret figurava um de vocação acadêmica, Hildegardo Leão Veloso, autor de estátuas equestres e mausoléus. Anita Malfatti teve de conviver com os palhaços e colombinas déco de Ferrignac (Inácio da Costa Ferreira). Talvez, quem sabe, tivesse um diálogo mais próximo com a mineira Zina Aita, mas essa foi esquecida pela história ao embarcar para a Itália, onde foi cuidar dos negócios de cerâmica da família.

Havia um único cubista na Semana, Vicente do Rego Monteiro, pioneiro no trato de temas indigenistas, mas era um formalista ligado aos princípios estéticos da Escola de Paris. É duvidoso que se identificasse com as ideias de Oswald de Andrade de ruptura com a tradição acadêmica e valorização da cultura brasileira. Entrou por acaso na Semana e com obras que nem de longe foram produzidas para ela. Cabe mencionar a participação de Goeldi na Semana, um expressionista formado na escola alemã e certamente um dos gigantes entre os modernistas.

Goeldi foi definitivamente marcado pela obra de Alfred Kubin, a quem recorreu em mais de uma ocasião em busca de conselhos, mas, ao chegar ao Rio, em 1919, descobriu algo na realidade brasileira que o impulsionou a registrar na xilogravura – adotada logo após a Semana – cenas do árido cotidiano das pessoas do povo, transfigurado num embate entre a goiva e a madeira. Seu mundo soturno de marginais à deriva não tem as cores tropicalistas de Tarsila nem combina com os excessos cromáticos de outros modernistas, o que o transforma num outsider dentro do próprio movimento. Mas, como avaliou Mário de Andrade, o Modernismo não foi uma estética, na Europa ou no Brasil. Foi um estado de espírito – “revoltado e revolucionário”. E assim deve ser entendido.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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