Nem “mimimi” nem “mundo chato”: entenda por que o black face é um ato de discriminação

31/10/2021 08:57
Por Luana Motta

“Imagina: você é convidada pra ir em uma festa e encontra alguém vestido de você. E trazendo isso como uma fantasia, não como uma forma de homenagear. Pegam suas características  – que são nossas, de pessoas pretas: o nariz, a boca – e trazendo isso como uma caricatura. Quando na verdade, as pessoas estão brincando e fazendo chacota com você”.

Cleonice Fernandes, educadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), definiu como se sentiu ao ver mais um episódio em que pessoas brancas se caracterizaram de pessoas negras em uma festa. O chamado “Black Face” é um tipo de discriminação classificado como racismo recreativo, quando se usa características de pessoas negras para ridicularizá-las. 

O caso aconteceu na semana passada, na Igreja Batista Atitude, quando um casal membro da igreja se vestiu de “nega maluca” para uma festa a fantasia. Após a repercussão, a Igreja publicou uma nota dizendo que “as partes envolvidas não tinham conhecimento do que é “Black Face”, portanto, fizeram suas fantasias sem a intenção de serem racistas”. A Tribuna tentou contato com o casal, mas não teve retorno. A questão é que esse caso não é isolado. Pelo contrário: o racismo recreativo, infelizmente, se repete com mais frequência do que se imagina. 

“É um problema sistêmico do país, que vem do racismo estrutural, do racismo institucional, que coloca pessoas negras para fazer essa parte recreativa, o racismo recreativo. Nós somos vistas como figuras caricatas, figuras feias e hipersexualizadas. Quando se fala da nega maluca é o bumbum grande, o peito, é a forma do corpo, não é só pela cor, mas também por toda questão simbólica que colocam no nosso corpo”, explica a advogada Karoline Cerqueira. 

Para a educadora Cleonice, que também faz parte do Coletivo Denegrindo – Coletivo de Teatro Preto de Petrópolis, o Black Face está longe de ser uma homenagem aos negros, e considera que argumentar com desconhecimento é um erro. “Se quiser homenagear uma pessoa negra, converse com ela, pergunte como ela se sente e o que vivencia. Fale sobre a escravidão, sobre nossas histórias e o preço que a gente paga até hoje. Esse caso é um exemplo do preço que pagamos: você ser um tema de fantasia de carnaval. Todo mundo sabe o que é Black Face, é um erro desumano, tem que acabar. Não somos fantasia, é falta de respeito. Não é uma prática de brincadeira sem intenção, é uma prática de racismo”, disse. 

Essa caracterização ridicularizada em forma de fantasia usada no carnaval, por exemplo, não acontece apenas com a pessoa negra, mas também acontece com os indígenas e com outras etnias. Quando o caso petropolitano repercutiu nas redes sociais, muitas pessoas disseram em comentários que isso é “mimimi”, ou que o “mundo está chato”. Para a advogada Karoline, o número de casos como esse não aumentou e nem é “mimimi”: é a busca por informação e o uso de plataformas para dar visibilidade ao movimento negro que tem ajudado a trazer o tema para o debate público. 

“Não é que agora as pessoas estejam fazendo muito mais, acontece que, agora, as pessoas negras estão mostrando isso. Estão usando a internet, estão dando seu relato, e estão mais politizadas e estudando sobre o tema”, explica Karoline. 

Para a advogada, a mudança de consciência em relação ao racismo tem que começar pelas pessoas brancas, é uma luta que precisa da participação de todos. 

“Quem tem que discutir como acabar com o racismo são as pessoas brancas. As pessoas brancas têm o dever e a responsabilidade de acabar com o racismo e não a gente. Nós levantamos todos os dias da cama e enfrentamos o racismo, saímos para a rua e somos discriminados, somos mortos, sofremos com o racismo. Quem criou, quem sistematizou e organizou o racismo no governo, no sistema, no país, não fomos nós, foram as pessoas brancas. E elas que precisam desconstruir, desconstitucionalizar de uma maneira sistemática, estrutural. A gente só luta, resiste e briga todo dia contra isso”, disse Karoline.

STF decide que injúria racial pode ser equiparado ao crime de racismo

 Na última quinta-feira(28), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o crime de injúria racial pode ser equiparado ao de racismo e ser considerado imprescritível. O crime de injúria racial está previsto no Código Penal, e se refere à ofensa à dignidade ou ao decoro da vítima, quando é usada uma palavra ou termo sobre a raça e cor com a intenção de ofender a vítima. Já o crime de racismo está previsto em lei, e se refere a ofensa discriminatória contra um grupo ou o coletivo, com contexto religioso, cultural e étnico, por exemplo. O crime de racismo é inafiançável e imprescritível. 

O caso julgado pelo STF aconteceu em 2013. Uma idosa de 79 anos, foi condenada pela Justiça do Distrito Federal a um ano de prisão pelo crime de injúria qualificada por preconceito. Na ocasião do crime, a idosa xingou uma funcionária de um posto de gasolina de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”. Quando a moça informou que não poderia pagar pelo abastecimento do carro com um cheque, uma norma da empresa. 

A defesa da idosa alegou que as ofensas não poderiam ser punidas devido a prescrição do crime. Para os advogados, houve a extinção da punição em razão da idade. De acordo com o Código Penal, o prazo de prescrição cai pela metade quando o réu tem mais de 70 anos. 

O processo começou a ser votado no ano passado, na retomada neste ano, após vistas do ministro Alexandre de Moraes, os ministros entenderam que a atitude da idosa foi intencional para ofender a vítima em virtude da sua condição de negra. Os ministros decidiram por 8 votos a 1 que o crime de injúria racial é imprescritível, o equiparando ao crime de racismo. 

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