Netanyahu não faz o suficiente pela volta dos reféns, diz negociador que soltou soldado
Quando Gershon Baskin expressou seu desejo de sair dos Estados Unidos e emigrar para Israel, ele sabia que queria ser um ativista pela solução de dois Estados. Mas muitos israelenses não o levaram a sério.
“Eles me falavam que eu não conhecia os árabes, então passei dois anos em uma cidade árabe-israelense e provavelmente conheci mais os palestinos nesse tempo do que qualquer judeu de Israel”, apontou Baskin, em entrevista ao Estadão. O ativista e negociador foi pioneiro em seu trabalho de aproximar a comunidade árabe-israelense, cerca de 20% da população de Israel, do resto do país.
Após fundar diversas organizações que buscavam uma ponte para a criação de um Estado palestino ao lado de Israel, Baskin conheceu um integrante do grupo terrorista Hamas em uma conferencia no Cairo, em 2006. Quando o soldado israelense Gilad Shalit foi capturado pelo Hamas durante uma patrulha na fronteira entre Israel e Gaza, esse contato rendeu frutos.
Baskin iniciou um canal secreto de comunicação entre Israel e o Hamas e foi o principal negociador do acordo que levou à soltura de Shalit, em outubro de 2011, após mais de cinco anos preso. No acordo, 1027 prisioneiros palestinos foram libertados, incluindo o atual líder do Hamas e arquiteto dos ataques de 7 de outubro, Yahya Sinwar.
O ativista recorda a negociação como difícil e analisa que existem muitas diferenças entre a situação de Shalit e a dos 101 reféns israelenses que ainda estão em Gaza.
“Em 2011 o Hamas tinha apenas um soldado israelense como refém e existia um grande interesse em mantê-lo vivo para usá-lo como barganha. A realidade pós-7 de outubro é bem diferente, temos 101 reféns em Gaza, mais de 40 mil palestinos foram mortos, o enclave está destruído”, aponta Baskin. “Com Shalit, o acordo só foi possível quando o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu disse que queria que todos os esforços fossem feitos para que ele voltasse para casa. Nesta guerra isso não aconteceu ainda”.
Gershon Baskin vem ao Brasil a convite do Instituto Brasil-Israel para participar do Festival Literário do Museu Judaico e outros eventos a partir de terça-feira, 17.
Confira trechos da entrevista:
Poderia contar mais sobre a sua trajetória como ativista e negociador?
Eu nasci nos Estados Unidos e me envolvi no movimento sionista quando tinha 14 anos. Aos meus 17 eu passei um ano em Israel e fiz universidade nos Estados Unidos sabendo que me mudaria para Israel no fim do curso.
No começo da faculdade eu passei a entender melhor o conflito entre Israel e Palestina, comecei a ler mais sobre o assunto e conversar com mais pessoas. Passei a acreditar na necessidade da criação de um Estado palestino ao lado de Israel. Ainda acredito que se Israel quiser ser um Estado judaico e democrático precisa fazer isso.
Quando decidi me mudar para Israel eu sabia que meu ativismo seria voltado para a busca por uma solução de dois Estados e muitos israelenses que eu conheci me questionaram e falaram que eu não entendia nada. Além disso, muitos israelenses ressaltaram que eu também não conhecia os palestinos.
E eu pensei comigo mesmo: como ganhar credibilidade para que eles não me digam essas coisas? Pensei em fazer um mestrado em Beirute, mas com a Guerra Civil eu optei por outro caminho. Participei de um programa em que morei em cidades árabes dentro de Israel e contribui na facilitação de um diálogo com cidades judaicas da região.
Depois de algum tempo eu percebi que sabia mais sobre os palestinos do que a maioria dos israelenses. Percebi também que o governo israelense realmente não fazia nada para trabalhar as relações com os cidadãos árabes de Israel. Nos anos 70 os árabes compunham 18% da população israelense, agora o número já chega a 21%.
Por isso, escrevi uma carta para o então primeiro-ministro de Israel Menachem Begin pedindo que ele me contratasse para trabalhar essas relações. Ele aceitou e eu me mudei para Jerusalém e virei o primeiro servidor civil a pensar nessa relação entre judeus e árabes em Israel. Ajudei a abrir um departamento de educação para a democracia e a coexistência no governo israelense através do Ministério da Educação. Fundei um instituto que focava na coexistência árabe-israelense, que dirigi por sete anos.
Depois de conversar com palestinos em um campo de refugiados na Cisjordânia eu percebi que existia abertura para um diálogo sobre paz e fundei o IPCRI, o Instituto de Políticas Públicas Israel-Palestina e juntei grupos de israelenses e palestinos para conversar sobre como poderíamos conseguir uma solução de dois Estados.
Ao longo dos 24 anos seguintes, organizei, administrei e facilitei a mediação de mais de 2 mil grupos de trabalho sobre diversos temas como segurança, gestão de fronteira, agricultura, água, meio ambiente, saúde e turismo.
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Em uma conferência do Banco Mundial que estive no Cairo, onde era o único israelense, eu conheci uma pessoa do Hamas. A participação do Hamas naquela conferência levou a uma tentativa de criar um diálogo secreto entre o Hamas e os israelenses. O canal de fato não foi criado, mas o meu relacionamento com essa pessoa do Hamas fez com que eu fosse até a Faixa de Gaza.
Eu passei duas horas no escritório do primeiro-ministro do Hamas em Gaza e também conheci os seus conselheiros. Uma semana depois que Gilad Shalit foi sequestrado, em 2006, esta pessoa ligada ao Hamas que eu conheci em Cairo me ligou e me incentivou a fazer alguma coisa.
Dez meses antes, um primo da minha esposa chamado Sasson Oriel havia sido sequestrado e morto pelo Hamas. A família tinha me pedido para ajudar, mas naquela época eu não tinha os recursos para fazer isso. Em seu funeral eu jurei que faria todo o possível para salvar vidas e tentei fazer isso.
E esse é o pensamento que esteve comigo durante os cinco anos e quatro meses que Gilad Shalit esteve em cativeiro e eu tentei fazer todo o possível para trazê-lo para casa.
Como foi essa negociação entre Israel e Hamas?
As negociações foram bem difíceis. O Hamas no geral é bem direto no que quer e realmente age de acordo e os israelenses nunca acreditaram de fato que o Hamas estava dizendo a verdade. O governo israelense acreditou que podiam pressionar o Hamas militarmente e com o tempo o Hamas poderia reduzir as suas demandas.
Israel também acredita que a pressão pública em Israel faz com que o Hamas aumente as suas exigências. Mas isso é falso.
O Hamas colocou as suas exigências sobre a mesa logo no início e no geral manteve essas exigências, não aumentou e nem diminuiu.
A realidade de agora é muito diferente da de Gilad Shalit. Em 2011 o Hamas tinha apenas um soldado israelense como refém e existia um grande interesse em mantê-lo vivo para usa-lo como barganha. A realidade pós-7 de outubro é bem diferente, temos 101 reféns em Gaza, mais de 40 mil palestinos foram mortos, o enclave está destruído e mais de 2 milhões de pessoas estão sem casa. Israel assassinou boa parte da liderança do Hamas e a pressão militar que tentou fazer matou diversos reféns.
Em 11 meses oito reféns foram resgatados em operações militares e muitos morreram como resultado delas.
O Hamas não aumentou as exigências, na verdade as reduziu. Nos primeiros dois meses de guerra, o grupo apontava que queria que Israel libertasse todos os palestinos presos por todos os reféns, agora já não se fala mais nisso. Houve um período em junho em que o Hamas estava pronto para aceitar a ideia de que nas primeiras seis semanas de cessar-fogo Israel não precisaria aceitar um compromisso de acabar com a guerra. Depois que Israel não aceitou isso, o Hamas aumentou as demandas.
Temos uma realidade muito difícil e fica ainda mais difícil porque as duas partes não conversam diretamente. O diálogo só existe por terceiros, que tem seus próprios interesses e o próprio estilo de negociação. Eu li os documentos das negociações entre Hamas e Israel e o acordo que eles estão tentando negociar a mais de 3 meses é muito ruim. É chocante.
É preciso lembrar que Gilad Shalit ficou no cativeiro do Hamas por cinco anos e quatro meses. Ele foi mantido em cativeiro por um inimigo mais do que qualquer outro israelense na história de Israel.
E um acordo só foi possível quando o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse para David Madan, um funcionário do Mossad, que ele queria que eles fizessem de tudo para que Shalit voltasse para casa. No caso da guerra de agora, os negociadores israelenses não ouviram estas mesmas palavras de Netanyahu.
Então os negociadores estão costurando um acordo pela volta dos reféns sem uma posição oficial de Netanyahu de que é necessário fazer tudo para que os sequestrados voltem para casa. Eles não podem costurar um acordo sem que Netanyahu lhes diga essas palavras.
Apenas um massivo protesto pedindo a volta dos reféns ou um ultimato dos Estados Unidos poderia fazer com que Netanyahu mudasse a sua postura. Enquanto isso, reféns israelenses estão morrendo.
Qual é a diferença entre o Netanyahu de 2011 e o de 2024?
Netanyahu é o mesmo, mas ele agora está com esteroides. Ele se descrevia no passado como o melhor líder do povo judeu desde Moises e achava que iria para os livros de história como o político que protegeu Israel de uma aniquilação nuclear do Irã e do estabelecimento de um Estado palestino.
Ele fez tudo que poderia para prevenir qualquer resolução do conflito Israel-Palestina e os seus erros fizeram com que ele deixasse o Irã mais próximo do que nunca de criar uma arma nuclear. O que aconteceu no dia 7 de outubro do ano passado foi consequência direta de seu pensamento de que Israel
Netanyahu pensou que poderia fazer tudo isso e ainda sim conseguir fechar vários acordos de paz com nossos vizinhos e tudo isso explodiu na nossa cara no dia 7 de outubro do ano passado. Ele é um homem que não tem conexão nenhuma com a população e não tem conexão nenhuma com a realidade.
Ele empoderou políticos em Israel que eram ilegítimos antes. Netanyahu é refém destes políticos agora e sabe que o fim desta guerra é possivelmente o fim de sua carreira política. Os danos causados por ele contra o Estado de Israel e o povo judeu o credenciaram a ser considerado o pior líder que o povo judeu já teve em sua história.
Netanyahu justifica a impossibilidade de um acordo por conta do chamado Corredor Filadélfia, em Gaza. Qual é a sua avaliação?
Não faz sentido nenhum. Quase todos os túneis do Corredor Filadélfia foram fechados pelo Egito em 2016 e 2017. As Forças de Defesa de Israel (FDI) não encontraram grandes túneis na região. Se os israelenses não confiam nos egípcios, uma supervisão pode ser feita pelos americanos ou europeus.
Não vejo nenhuma razão para que soldados israelenses fiquem lá e possam ser alvos do Hamas. Eles podem acertá-los a qualquer momento com rifles e RPGs. Essa exigência de Israel só surgiu para que um acordo não fosse atingido.
Alguns dias atrás eu apresentei uma proposta para a equipe de negociação de Israel de um possível acordo que o Hamas está disposto a fazer para acabar com a guerra em três semanas. Na proposta, todos os reféns israelenses voltariam para Israel e em troca o Exército sairia de Gaza e prisioneiros palestinos seriam libertados.
Eles me responderam que o primeiro-ministro não quer acabar com a guerra. Não existe nenhum acordo com o Hamas que não acabe a guerra e não existe uma maneira de salvar os reféns israelenses sem acabar com a guerra.
Em novembro do ano passado Hamas e Israel conseguiram um acordo. Por que isso foi possível?
Foi um ponto fora da curva. O Hamas queria fazer o acordo em outubro do ano passado, mas foi adiado por conta da pressão militar israelense e pelo fato de o Exército ter rodeado a Cidade de Gaza.
O Hamas não planejou a captura de mulheres, crianças e idosos no dia 7 de outubro. Aconteceu porque o Exército israelense não estava na fronteira no dia 7 de outubro e muitos palestinos cruzaram a fronteira, mais do que o planejado. Por isso eles mataram muito mais pessoas do que planejaram.
Depois de quatro dias de guerra eu mandei mensagem para políticos como Benny Gantz e Gadi Eisenkot e perguntei se existia interesse em um acordo com o Hamas para que as crianças, mulheres e idosos israelenses voltassem para casa. 39 mulheres palestinas e 190 adolescentes estavam nas prisões israelenses naquele momento, nenhum tinha matado israelenses, nenhum era de Gaza e não eram pessoas importantes do Hamas.
Eles falaram que existia um interesse e iriam falar com o Gabinete de Guerra. Mas demorou muito até que isso de fato ocorresse.
Qual é o seu envolvimento com as negociações neste momento?
Eu me envolvi desde o início da guerra na busca por um acordo. Eu tentei ajudar na consolidação de um acordo para a soltura de mulheres, crianças e idosos e conversei com oficiais do Egito e também do Catar. Eu passei o número de diversos ministros israelenses ao governo do Catar e vice-versa.
Eu também facilitei o contato entre a Cruz Vermelha e o Egito, depois que duas reféns foram libertadas pelo Hamas.
Muitas famílias de reféns israelenses me procuraram e pediram ao governo israelense que me formalizasse como negociador. Por um breve período de duas semanas em maio eu fui formalizado e conversei diretamente com líderes do Hamas, mas depois me desligaram do cargo.
Nas últimas duas semanas eu fui procurado novamente por famílias de reféns e fui perguntado se poderia alcançar um acordo com o Hamas. Então eu iniciei novamente contatos com líderes do Hamas e estou esperando uma resposta do Hamas, indicando que eles concordariam em encerrar a guerra em três semanas, com a soltura dos 101 reféns israelenses e uma lista de prisioneiros palestinos que poderiam ser liberados.
Muitas famílias me disseram que eles tinham uma comunicação direta com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e poderiam marcar uma reunião com ele para mostrar o acordo e possivelmente forçar Netanyahu a concordar com ele.
O líder do Hamas e arquiteto dos ataques de 7 de outubro, Yahya Sinwar, foi libertado de uma prisão israelense após o acordo que o senhor negociou entre Israel e Hamas por Gilad Shalit. Era possível prever que ele teria um cargo de liderança no Hamas?
Eu não tive controle sobre quais palestinos seriam libertados. Dos 1027 prisioneiros palestinos que foram libertados, mais de 300 estavam cumprindo penas de prisão perpétua por terem matado israelenses, incluindo quatro pessoas que assassinaram o primo da minha esposa. Israel não pensou que Yahya Sinwar seria um grande problema, especialmente porque ele estava cumprindo pena de prisão por ter matado palestinos e não israelenses.
Ele não matou israelenses e nem judeus, ele matou palestinos que colaboraram com Israel. Então apesar de ele ter sido considerado um prisioneiro importante, ele não foi considerado o mais perigoso.
O problema não é Yahya Sinwar, o problema é Benjamin Netanyahu, que é primeiro-ministro desde 2009 e não fez nada para resolver o conflito. Três vezes em 2012 e 2013 eu trouxe ofertas de Mahmoud Abbas para a criação de um canal secreto de diálogo sobre o conflito Israel-Palestina e ele disse não.
E esse é o contexto que levou ao dia 7 de outubro do ano passado. Mesmo assim, as Forças de Defesa de Israel não estavam na fronteira. Eles estavam na Cisjordânia, protegendo colonos.
Se 15 tanques e três helicópteros de ataque estivessem na fronteira no dia 7 de outubro do ano passado, o ataque não teria acontecido.
O Hamas disse que se soubesse que o Exército não estava lá, teria enviado 10 mil pessoas para a fronteira e teria conquistado Tel-Aviv.
O que vai acontecer em Gaza depois da guerra?
Eventualmente e em um futuro não muito distante nós teremos um governo palestino em Gaza ligado a Autoridade Palestina, mas sem pertencer a este grupo. Provavelmente seria um governo de tecnocratas com diversas facções políticas palestinas para que o Hamas não fizesse parte do governo.
Sem este governo de tecnocratas fica impossível de reconstruir Gaza e essa reconstrução é urgente. Os países árabes devem ajudar no financiamento, mas eles não vão fazer isso se o Hamas continuar no poder. Não tenho uma bola de cristal, mas a solução mais lógica seria alguma solução negociada para que a liderança do Hamas saia de Gaza e vá para o Catar.
Conversas para um possível Estado palestino também aconteceriam, mas não apenas entre israelenses e palestinos.
É necessário incluir toda a região nesta negociação e o ataque iraniano a Israel mostrou que isso é possível porque países árabes ajudaram na defesa do território israelense. A solução de dois Estados está de volta à mesa depois de muitos anos e precisamos trabalhar para isso.