Norah no tempo das lembranças

04/05/2021 13:00
Por Julio Maria / Estadão

Foi assustador. Em 2002, ainda pagando com dificuldade o aluguel de US$ 1,4 mil por um apartamento no Brooklyn, Norah Jones sentiu-se tragada por uma máquina. Era apenas seu álbum de estreia, mas Come Away With Me a explodiu pelos ares, garantindo sete estatuetas do Grammy de 2003 e mais de 27 milhões de cópias pelo planeta.

Filha da promotora de shows Sue Jones e da lenda do sitar indiano, Ravi Shankar (morto em 2012), Norah foi criada por sua mãe em Grapevine, Texas, e começou a cantar em coros de igreja aos cinco anos. Seu pai, por não ter sido presente, tornou-se um tabu. “Se perguntarem sobre Ravi Shankar, a entrevista estará encerrada”, disse uma assessora em 2004 aos jornalistas que a entrevistaram no País.

Aos 42 anos e com dois filhos pequenos, Norah fala com o Estadão desde sua residência, nos Estados Unidos, por uma chamada de Zoom. Ela está lançando um álbum com faixas registradas ao vivo, ‘Til We Meet Again, e não parece angustiada como suas canções chegam nem perseguida pelas sombras do passado. Diz que se considera uma pianista melhor do que no início, que a solidão que transmite não é o retrato de uma mulher triste e que o pai Ravi Shankar (a pergunta não é mais proibida) a deixou, sim, algumas coisas…

Norah, seu novo álbum traz não só uma coleção de músicas gravadas ao vivo mas também o som da plateia, das palmas, os assobios. Foi sua forma de matar as saudades do palco?

Sim! Na verdade, eu estava ouvindo alguns shows gravados em dezembro de 2019 (feitos em São Paulo e no Rio) para escolher canções a pedido de uma emissora de rádio. Aquela turnê inteira foi especial, e o calor que senti ouvindo o público e a interação foram mágicos. Foram shows tão bonitos que decidi lançar um álbum com o nome de ‘Til We Meet Again (“até nos encontrarmos de novo”). Não sei quando poderemos fazer isso.

Você tem dois filhos pequenos em casa. Como a pandemia mudou sua vida, uma mulher que vive da música? Você compõe com as crianças? Toca para elas? Toca menos ou mais hoje do que tocava antes?

Em 2020, fiz lives todas as semanas por um tempo. Lives de 15 minutos, não longas, mas que me davam motivo para me sentar e tocar. Era como eu me conectava com as pessoas. Algumas vezes, toco para meus filhos e é divertido vê-los fingindo que sabem tocar. Eles não sabem, são pequenos, mas foi muito bom ter um piano na sala durante esses dias.

O caráter do ao vivo faz músicas como Don’t Know Why, Sunrise e Cold, Cold Heart reaparecerem como canções frescas, com interpretações livres. Como você define uma grande canção?

Uma grande canção tem algo que te faz querer ouvi-la de novo e, para o músico, algo que o faz querer tocá-la de novo. Amo como as canções soam diferentes ao vivo, como você disse. Não faço isso para torná-las diferentes para mim, mas apenas para conseguir fazê-las circular ao longo de quase vinte anos como novas. Músicas têm vida e, toda vez que toco uma delas, sinto algo diferente, como se estivessem respirando um novo ar. Ou seja, quanto mais as tocamos, mais longe elas podem chegar da gravação original. Elas crescem.

Seu piano foi sempre tocado com poucas notas concentradas, tranquilamente, como se sua música flutuasse no ambiente. Nunca há solos nem frases usando extensões maiores. Como você se define como pianista?

Eu acho que meu jeito de tocar mudou muito nos últimos anos. Percebi que, no começo, mesmo tendo o piano como instrumento principal, fiz as primeiras gravações com um pensamento de composição muito baseado na guitarra. Por isso, sempre tive um guitarrista na banda. Já os álbuns mais recentes aparecem mais focados no piano. Eu acredito que toque muito melhor hoje do que costumava tocar nos discos antigos. Estou gostando disso. É como estávamos falando, a música está sempre mudando, viva. Cresce e fica melhor, espero.

Você tem seus mestres ao piano? Quem são eles?

Tenho muitos. Meus favoritos são Bill Evans, Ray Charles, Bobbie Nelson (irmã mais velha de Willie Nelson e membro de sua banda)…

Thelonious?

Eu amo Thelonious Monk e Duke Ellington é um dos meus pianistas favoritos. Mas também Aretha Franklin e Nina Simone, e não apenas porque elas cantam e tocam. Adoro o pacote inteiro, mas o piano, especificamente, eu simplesmente amo e sinto que se trata de uma enorme influência para mim, mesmo só tendo conhecido essas pessoas mais tarde, quando eu já era adulta.

Existe uma profunda tristeza em quase tudo o que você canta. Uma solidão imensa mesmo em momentos felizes que você parece ter aprendido a canalizar para transformá-la em música. É possível saber de onde vêm esses sentimentos? Você é mesmo uma mulher triste ou é boa atriz? (risos).

Eu não sei se eu posso identificar de onde vem isso, realmente não sei, mas posso dizer que não sou uma pessoa triste. E tem uma coisa… Eu não acho que poderia definir toda a minha personalidade pela música que toco e canto. Acredito então que eu coloque todos esses sentimentos que você diz na própria música, e que talvez toda essa tristeza vá para ela de forma que me permita não ser uma pessoa tão triste assim.

Mas o que a faz se identificar, por exemplo, com canções como Black Hole Sun (uma regravação da música do Soundgarden que aparece em seu novo álbum). A letra parece ser ainda mais terrivelmente real para um brasileiro honesto nos dias de hoje quando diz “the times are gone for honest men / and sometimes a long time for snakes” (o tempo passa para um homem honesto e às vezes é longo demais para as serpentes”).

Eu imagino… Eu amo essa canção faz uns 30 anos, desde que foi lançada. Talvez mais. A razão pela qual a toquei vem do dia em que eu estava no teatro em que Chris Cornell havia feito seu último show (em Detroit, antes de cometer suicídio, em 2017, aos 52 anos). Eu estava lá uma semana depois de sua morte e senti que tocar essa canção seria um tributo a ele. Foi dos momentos mais bonitos que tive no palco por causa do público, de mim e da canção. Foi tão cheio de amor por ele, e de tristeza também.

Você conhece alguns músicos brasileiros que aparecem em suas gravações, como o flautista Jorge Continentino, o percussionista Marcelo Costa e o parceiro Rodrigo Amarante. O que pensa quando ouve notícias do Brasil sobre a pandemia?

Isso é tão assustador. Assustador porque somos todos irmãos, amigos, e deveríamos agir como amigos. Ajudarmos uns aos outros, mas tudo parece ser algo tão separado entre todos… Eu acho tudo aterrorizante, tenho uma sensação de desamparo. Sei que vocês devem se sentir desamparados também, e essa é a parte mais triste. Como superar isso sem a ajuda que deveriam ter?

Há uma música em seu álbum Pick Me Up Off The Floor chamada This Life as We Know It Is Over (A vida como conhecíamos acabou). Você acredita nisso?

Sim, para algumas pessoas sim. Infelizmente, alguns estão vivendo isso de uma maneira muito mais difícil do que outros. Mas essa canção foi escrita antes da pandemia, apenas inspirada em um dia triste.

Você não fala muito de seu pai, Ravi Shankar. Em uma pergunta: o que ele deixou a você?

Eu não sei… Acho que esta é uma pergunta difícil de responder… Mas, talvez, meus olhos castanhos, minha cor da pele, minha musicalidade, minha baixa estatura…

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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