Nos salvaremos a partir do princípio-esperança

02/jun 08:00
Por Leonardo Boff

A grande enchente que está assolando o Rio Grande do Sul é um dos sinais mais inequívocos, dado pela Mãe Terra, dos efeitos extremamente danosos da mudança climática. Já estamos dentro dela. Não adianta os negacionistas se recusarem em aceitar a esse dado. Os fatos falam por si. Dentro de pouco chegarão na vida de todas as pessoas, ricos e pobres, como chegou a todos na maioria das cidades ribeirinhas daquele estado.

Ocorreu uma surpreendente aceleração do processo de aquecimento global e não se cumpriu o decidido no Acordo de Paris de 2015 segundo o qual se previa uma redução drástica de gases de efeito estufa para não aumentarmos a temperatura de 1,5ºC até 2030. Quase nada se fez: em 2022 foram lançadas na atmofera 37,5 bilhões de toneladas de CO² e em 2023 foram 40,8 bilhões de toneladas. Tudo foi excessivo. Em razão disso alguns climatólogos sustentam que antes de 2030 como previsto, o aquecimento se antecipou. Por volta de 2026-2028 o clima da Terra se estabilizaria em torno de 38-40ºC e em alguns lugares com números mais elevados.

A temperatura de nosso corpo está por volta de 36,5ºC. Imaginem se pela noite a temperatura ambiente se mantiver por volta de 38ºC? Muitos, entre os idosos e crianças, não aguentarão e poderão até morrer. E para todos será uma grande agonia. Sem falar da perda da biodiversidade e das safras de alimentos, necessários para a sobrevivência.

Quem viu claro o estado da Terra foi um representante dos povos originários, aqueles que se sentem Terra e parte da natureza, uma liderança yanomami Dário Kopenawa: “A Terra é nossa mãe e sofre há muito tempo. Como um ser humano que sente dor, ela sente quando invasores, o agronegócio, mineradoras e petroleiras derrubam milhares de árvores e cavam fundo no solo, no mar. Ela está pedindo ajuda e dando avisos para que os não indígenas parem de arrancar a pele da Terra.”

Como continuamos arrancando a pele da Terra e agravando a mudança climática, o potencial de esperança chegou ao limite. Cientistas deixaram claro que a ciência e a ténica não poderão reverter esta situação, apenas advertir da chegada de eventos extremos e mitigar suas consequências desastrosas. Chegamos à atual situação global simplesmene porque grande parte da população não conhece a real situação da Terra e a maioria dos chefes de Estado e os CEOs das grandes empresas preferiram continuar a lógica da produção ilimitada, arrancada da natureza e do consumo sem limites, a ouvir as advertências das ciências, da Terra e da vida. Não se fez a lição de casa. Agora a fatura amarga chegou.

O que ocorreu no Sul do Brasil é apenas o começo. Os desastres ecológicos vão se repetir com mais frequência e de forma cada vez mais grave em todas as partes do planeta.

Onde vamos buscar energias para ainda crer e esperar? Como foi dito com sabedoria: “quando não há mais razão para crer, então começa a fé; quando não há mais razão para esperar, então começa a esperança”. Como disse com acerto o autor da epístola aos Hebreus (por volta dos anos 80): “A fé é o fundamento do que se espera e a convicção das realidades que não se vêem” (11,1). A fé vê o que não se vê com os simples olhos carnais. A fé vê, com os olhos do espírito que é o nosso profundo, a possibilidade de um mundo que ainda virá, mas que, seminalmente, mas ainda invisível, está entre nós. Por isso a fé se abre à esperança que é sempre ir além do que é dado e verificado. A fé e a esperança fundam o mundo das utopias que forcejam por se realizar historicamente.

Aqui vale o princípio-esperança. O filósofo alemão Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança. Ele representa um motor interior que sempre está funcionando e alimentando o imaginário e o inesgotável potencial da existência humana e da história. O Papa Francisco na Fratelli tutti afiança: “a esperança nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive” (n. 55). Assumir este princípio-esperança, hoje, nesta nova fase da Terra, é extremamente urgente.

O princípio-esperança é o nicho de todas as utopias. Ele permite continuamente projetar novas visões, novos caminhos ainda não trilhados e sonhos viáveis. O sentido da utopia é sempre nos fazer andar (Eduardo Galeano), sempre superar dificuldades e melhorar a realidade. Como humanos, somos seres utópicos. É o princípio-esperança que nos poderá salvar e abrir uma direção nova para a Terra e seus filhos e filhas.

Qual a nossa utopia mínima, viável e necessária? Ela implica, antes de mais nada, a busca da humanização do ser humano. Ele se desumanizou pois se transformou no anjo exterminador da natureza. Só recuperará sua humanidade se começar a viver a partir daquilo que é de sua natureza: um ser de amorização, de cuidado, de comunhão, de cooperação, de com-paixão, de ser ético e de ser espiritual que se responsabiliza por seus atos para que sejam benfazejos para todos. Pelo fato de não ter criado espaço a esses valores e princípios, fomos empurrados na crise atual que pode nos conduzir ao abismo.

Essa utopia viável e necessária se concretiza sempre, caso tenhamos tempo, dentro das contradições, inevitáveis em todos os processos históricos. Mas ela significará um novo horizonte de esperança que alimentará a caminhada da humanidade na direção do futuro.

Desta ótica nasce uma nova ética. Por todos os lados surgem forças seminais que buscam e já ensaiam um novo padrão de comportamento humano e ecológico. Representará aquilo que Pierre Teilhard de Chardin desde seu exílio na China em 1933 chamava de noosfera. Seria aquela esfera na qual as mentes e os corações (noos em grego) entrariam numa nova sintonia fina, caracterizada pela amorização, pelo cuidado, pela mutualidade entre todos, pela espiritualização das intencionalidades coletivas.

No meio de tanto abatimento e melancolia pela situação grave do mundo, nisso cremos e esperamos.

**Leonardo Boff escreveu, Habitar a Terra, Vozes, 2022; Cuidar da Casa Comum: pistas para protelar o fim do mundo, Vozes, 2024.

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