Nova tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem edição esgotada nos EUA

09/07/2020 13:40

Os protestos contra a morte de George Floyd tinham acabado de completar sete dias nos Estados Unidos (EUA) – e continuariam levando norte-americanos às ruas em cidades de todo o país por semanas – quando o livro de um autor brasileiro foi lançado. Não era exatamente um lançamento. O autor morreu há 112 anos e o romance foi lançado em 1879. Resultado: a edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Asssis, lançado nos EUA pela Penguin Classics esgotou-se em um dia. Nesta semana, já é possível comprar o livro no site da editora, tanto na versão impressa quanto na digital.

O Memórias Póstumas de Brás Cubas lançado pela Penguin Classics, ou The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, como ficou a edição norte-americana, foi traduzido pela americana radicada no Brasil Flora Thomson-DeVeaux, que também assinou a introdução e é responsável pelas notas explicativas sobre o clássico de Machado. O livro tem prefácio assinado pelo escritor e editor David Eggers.

Em uma conversa, Flora disse que o prefácio pode ter contribuído para Memórias Póstumas ter se esgotado em um dia nos Estados Unidos em meio a uma pandemia e a protestos raciais. O prefácio de Eggers foi publicado, antes do lançamento da tradução, na prestigiosa revista The New Yorker, que já teve entre seus colaboradores autores como Truman Capote e J.D. Sallinger. Outro fator, na opinião de Flora, também é a vontade do leitor dos EUA em procurar autores não brancos e que não façam parte do cânone norte-americano.

A tradutora também falou sobre a dificuldade de traduzir Machado de Assis e também por que aquele que é considerado o maior escritor da literatura brasileira não tem o mesmo reconhecimento no resto do mundo. “Certamente a demora na tradução não ajudou. Ele chega na língua inglesa com quase 70 anos de atraso”, disse Flora. “A gente está tentando recuperar esse atraso até hoje.”

Por qual motivo a senhora acredita que a nova tradução de Memórias Póstumas, que foi publicada nos EUA pelo selo Penguim Classics, vendeu tão bem a ponto de se esgotar em um dia?

É um mistério que nem eu, nem a editora previmos, porque senão a Penguim teria feito uma primeira tiragem enorme. A gente ainda está tentando entender qual foi a alquimia que fez com que esse livro chegasse até às pessoas. Eu acho que teve dois movimentos, de certa forma complementares, de certa forma contraditórios. O prefácio do David Eggers foi publicado no site da New Yorker, que tem um alcance enorme, e a maneira como ele descreve o livro tem muita leveza, ele fala que é um dos livros mais espirituosos jamais escritos, fala do humor, da inventividade e, ao mesmo tempo, foi um momento, enfim ainda estamos neste momento, em que as pessoas estão procurando ler mais autores não brancos, não [fazem parte] do cânone norte-americano. Enfim, tem essa tentativa também da parte de muita gente de se educar, de sair da caixinha em termos de referências. Essa é uma interpretação minha, só analisando o que estava acontecendo naquele dia, mas acho que pode ter muita gente que foi atrás do livro para se distrair, talvez, desse momento tão difícil, e pode ter gente que foi atrás do livro para se educar. Eu acho que existe uma chance do romance ser recebido de maneiras muito diferentes por tais públicos. Portanto, é um fenômeno que, só com as leituras chegando, a gente vai entender melhor o impacto, entender melhor o que aconteceu.

Alguma coisa diferencia a tradução que você fez do Memórias Póstumas de outras que foram lançadas anteriormente nos Estados Unidos?

Eu estudei por extenso as outras traduções, então, posso apontar maneiras, elementos que diferenciam a minha tradução em termos de estratégia. Eu tive acesso a muitas ferramentas linguísticas e digitais que os outros tradutores não tiveram, porque as outras saíram nos anos 50 e 90, respectivamente, mas acho que essas são sutilezas. Tem algumas coisas que diferenciam a tradução já a partir da embalagem, dá para dizer que é a primeira tradução anotada em língua inglesa. A Penguin é a primeira editora a apostar que isso seria necessário e interessante para o leitor em língua inglesa. Tem também o fato de sair não pela Penguin, mas pela Penguin Classics. É um selo que tem história, que tem um peso, é como se estivesse colocando Machado naquela prateleira da literatura universal. Se a Penguin Classics publica alguma coisa, você pressupõe que deveria conhecer. Eu poderia entrar em mais detalhes, em minúcias que diferenciam a minha tradução das outras, mas acho que é mais para especialistas.

A tradução de Memórias Póstumas chegou em um momento bem “peculiar”. Os Estados Unidos estavam, e estão, passando por uma pandemia e, ao mesmo tempo, uma série de protestos raciais em função da morte de George Floyd. Para você, esses dois fatores, mais especificamente os protestos, podem ter influenciado de alguma maneira no sucesso desta edição de Memórias Póstumas?

Podem, sim. Na verdade quando eu fui pensando no lançamento, temi que as manifestações ofuscassem completamente o evento, porque, o que ase sente muito nestes tempos é a urgência do momento. Uma semana particularmente conturbada, as manifestações pela morte do George Floyd tinham acabado de completar uma semana, estavam pegando fogo pelos Estados Unidos, e as redes sociais eram muito voltadas para organizar tais manifestações. Tinha muita coisa mudando o tempo todo e, nesse contexto, temi que um romance com quase um século e meio de vida ficasse escanteado, não chegasse agarrando as pessoas pela gola. Foi por isso também que foi surpreendente [a edição de Memórias Póstumas vender tanto], alguma coisa nessa mistura de fatores fez com que tivesse o efeito contrário. Isso é que eu não sei explicar, eu teria apostado em um efeito contrário.

O fato do Machado de Assis ser um autor negro, isso pode ter contribuído de alguma forma?

Pode, certamente. Isso que eu digo de ter um momento em que as pessoas estão procurando se informar, o movimento de descolonizar o cânone, ler mais autores negros, mas eu não tenho certeza de que esse teria sido o principal motivo de as pessoas procurarem o romance. Quando a pessoa compra, ela não preenche um formulário explicando por que comprou. Está aí um mistério.

Qual foi a maior dificuldade em traduzir a obra de Machado de Assis e, mais especificamente, Memórias Póstumas?

É uma coisa muito curiosa, tem um ensaio sobre Machado em inglês, tem um tradutor que, em determinado momento, disse que o Machado era muito fácil de passar para o inglês, e ele passou mais alguns anos traduzindo Machado, mas, no prefácio que fez de Dom Casmurro, falou o contrário, que Machado é traiçoeiro, justamente porque parece fácil de levar para o inglês. E ele não é. Quando você olha para o Machado, eu acho que os leitores da língua portuguesa veem mais normalidade do que a prosa realmente contém. Tem umas estranhezas nas colocações. Eu tentei prestar muita atenção em quando ele usava frases e expressões que me pareciam fora do comum para aquela época e aí reproduzir esse desvio no inglês, escolhendo frases e expressões tão obscuras quanto, mas o que se percebe mais do que uma frase, ou uma palavra, é que tem uma ambiguidade em Machado que é muito comentada em termos gerais, que a gente vê se manifestando em fenômenos como a dúvida, entre todas as aspas, sobre a traição da Capitu, mas essa ambiguidade, às vezes, está nos menores detalhes do livro. Quando você é obrigado a traduzir uma frase, você percebe, quando você lê, enquanto leitor, é isso que o Bento Santiago [personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis] fala dos livros falhos, dos livros em que os leitores são obrigados a preencher [as lacunas] por conta própria. O Machado escrevia assim. Quando você traduz, uma frase que você lê, parece que está tudo normal, mas quando vai traduzir, percebe que ele não deu todos os detalhes, e aí é que você consegue mapear aquilo que o cérebro do leitor/tradutor está sendo obrigado a preencher. Você vê que ele deixou uma margem estratégica de dúvida. Então, é como preservar isso de uma forma adequada, que, às vezes, no processo de tradução, a gente é obrigado a se definir mais para um lado ou mais para o outro. Mas o que eu acho mais interessante é olhar várias traduções de obras do Machado, porque aí que a gente entende as possibilidades que estavam latentes naquela dúvida. Quando você coloca lado a lado as traduções, elas podem estar relativamente juntas, e aí chega um momento em que alguma descrição de um personagem, ou de um gesto, um aditivo, você percebe que as traduções disparam em sentidos diferentes. Isso é porque o Machado não entrega todas as informações de bandeja. Por mais que a informação não pareça esquisita num nível de inventividade linguística de um Guimarães Rosa, ele está fazendo uma coisa, jogando com a dúvida, com a ambiguidade num nível microscópico. É fascinante, são esses os desafios sutis de se traduzir os romances do Machado.

A senhora acha que Machado de Assis tem o reconhecimento merecido fora do Brasil?

É difícil falar em mérito na literatura. Eu acho que o Machado deveria ser mais conhecido. Ele mereceria mais destaque. Eu também estudei a recepção das traduções de Memórias Póstumas de Brás Cubas ao longo do século 20, e o que se vê, a cada ciclo de traduções, são brasileiros e machadianistas comemorando e dizendo: será que agora, finalmente, Machado vai ser reconhecido lá fora? Por isso, eu tenho certo ceticismo, porque, quando vejo a cobertura de hoje, penso no Eugênio Gomes [escritor e crítico literário brasileiro], no Raimundo Magalhães Jr [jornalista, biógrafo e historiador] no começo dos anos 50 falando exatamente as mesmas coisas.

A senhora vê algum motivo para essa falta de reconhecimento de Machado no exterior?

Certamente a demora na tradução não ajudou. Ele chega na língua inglesa com quase 70 anos de atraso –  temos os primeiros contos traduzidos para o inglês no final da década de 1910, mas não são divulgados amplamente; então, Machado de Assis efetivamente chega aos Estados Unidos nos anos 50. Aí já são 70 anos de atraso em relação à publicação de Memórias Póstumas, mas ele já chega deslocado, chega como uma curiosidade, e eu acho que isso atrapalha a leitura, atrapalha o reconhecimento. A gente está tentando recuperar esse atraso até hoje. Talvez este seja um argumento para fazerem mais traduções de literatura brasileira contemporânea, para não descobrirem um grande autor brasileiro só daqui a 70 anos.

O Machado de Assis aqui no Brasil é estudado no ensino médio, e não é uma leitura querida por todos os estudantes. Por que a senhora acha que as obras de Machado, inclusive os contos, muitas vezes não são tão apreciadas pelos estudantes?

Eu não sei. Eu tenho quase vontade de sentar em uma sala de ensino médio e observar as aulas, o professor passando Memórias Póstumas, porque eu encontrei o romance aos 19 anos, li por conta própria no meio da faculdade e achei incrível, muito divertido. E fico me perguntando: se eu tive um encontro tão marcante com o livro justamente porque eu não era obrigada a ler, talvez tenha a ver com a maneira com que essas obras são apresentadas obras. Se o Machado de Assis já chega como uma grande imposição, engessada, em vez de ser uma leitura divertida, uma crítica social feroz, um modelo de escrita. Eu realmente não sei se tem algo que poderia ser feito para suavizar esse encontro, porque eu me recuso a acreditar que o problema esteja no livro. Eu li adolescente e eu me encantei.

A senhora conhece outros exemplos de resistência dos jovens a autores clássicos?

Flora – Eu posso pensar na minha própria resistência no ensino média a obras clássicas, A Letra Escarlate [clássico de Nathaniel Hawthorne publicado em 1850], por exemplo, que eu fui obrigada a ler. Eu acho que é fácil você encarar essas leituras como imposição, e não como uma descoberta. Não quero minimizar em nada o trabalho que um professor de ensino médio tem para animar os alunos a encarar a obra com mais boa vontade, mas eu consigo me identificar com esse aluno de ensino médio que está meio emburrado, que acha esse livro velho e chato. Só que, tendo lido muitas vezes, [vejo que] o Machado tem uma leveza de estilo, até comparando com contemporâneos. O Machado envelheceu muito bem. Quando eu ouço as pessoas falando em fazer uma versão simplificada, modernizada, penso que vai massacrar, não tem a menor necessidade. Não estamos falando de um texto medieval, o Machado, inclusive, tem elementos do português coloquial que consegue incorporar no ritmo da prosa – é uma das inovações dele.

Após esse sucesso de Memórias Póstumas, você tem planos de traduzir outras obras de Machado?

Muito provavelmente não vai ser do Machado, por um simples motivo: ressaca de doutorado. Todo mundo fica com vontade de respirar ares diferentes, tanto que, assim que defendi minha tese, eu me joguei na pesquisa para um podcast narrativo, que vai sair ainda este ano, sobre o caso da Angela Diniz [socialite brasileira assassinada pelo companheiro, o empreteiro Doca Street, em 1976 em Búzios, no Rio de Janeiro, em um caso de grande repercussão nacional]. São categorias completamente diferentes, Na minha próxima tradução, gostaria de fazer algo de um período diferente, de uma época diferente. Estou conversando, avaliando algumas possibilidades, mas nunca estive na posição de uma editora já se interessar por uma nova tradução – eu sempre fazia no meu tempo e, quando chegava a hora, botava embaixo do braço e saia batendo em portas. Então, é uma situação nova. De qualquer forma, ainda vai demorar, eu não tenho nada exatamente no forno.

Como é o podcast sobre a Angela Diniz em que você está trabalhando?

Desde o começo do ano passado, estou trabalhando na Rádio Novelo, que é uma produtora de podcast aqui no Rio. É uma coisa circular.  No primeiro ano de faculdade, eu comecei a estudar português e também  jornalismo em áudio. Rádio sempre foi uma paixão, cheguei a estagiar em uma emissora de rádio pública nos Estados Unidos. Então está sendo um reencontro com essa paixão a possibilidade de trabalhar com histórias em áudio.

E sobre o podcast?

Não posso adiantar muita coisa. É uma nova leitura desse caso, que teve um grande impacto nos anos 70 e, de certa forma, inspirou o movimento Quem Ama não Mata. A gente passou um ano e meio fazendo dezenas de entrevistas. É quase um documentário em áudio, serão oito episódios; estamos colocando os pingos nos is. Ele vai ser lançado nos próximos meses, não posso cravar a data ainda, mas não vai demorar muito.

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