Novo normal climático-fim da espécie e a salvação cristã: resposta a um desafio

05/03/2023 08:00
Por *Leonardo Boff e Pedro Ribeiro

Um entranhável amigo, sociólogo reconhecido, Pedro Ribeiro de Oliveira*, de Juiz de Fora, talvez o único que lê tudo o que escrevo, me corrige e sugere ideias novas, se deixou impactar (helás!) com meu artigo recente: ”O novo normal ameaçador”, que trata da mudança irreversível do regime climático da Terra, que poderá pôr em risco o futuro da vida humana. Como é um cristão crítico e sério escreveu-me esta provocação. Suponho que seja a de muitos leitores e leitoras. Permito-me transcrever o e-mail dele, na forma coloquial e, depois, a minha resposta, também coloquial.

Pergunta de Pedro Ribeiro de Oliveira:

Leonardo, meu irmão,

Acabo de ler seu texto “O novo normal ameaçador” soltando os cachorros sobre a inevitável catástrofe climático-ambiental que está se abatendo sobre a Terra e quero te sugerir / pedir uma reflexão teológica sobre a Salvação. Será que nem Jesus pode salvar a Humanidade? Será que seu Evangelho do Reino não deu em nada? Que Ele só consegue salvar almas? Será que o Filho do Homem, depois de ressuscitado pelo Espírito, acabou morrendo à míngua?

Sei lá… Se está toda a espécie humana, e mais um monte de outras, que vão junto, condenada a desaparecer, a promessa do Reinado de Deus foi só uma Esperança que ajudou uma parte (pequena) da Humanidade a viver momentos felizes, antecipando-o na História. Cadê a Salvação que Jesus prometeu e as Igrejas cristãs anunciaram por tantos séculos?

Só nos resta o consolo de que, não havendo Reinado de Deus na História e que nossos corpos estão mesmo condenados a morrer, teremos uma vida eterna e etérea para nossas almas. Mas se assim é, muita gente fez papel de bobo, inclusive o próprio Jesus de Nazaré: ele podia ter ensinado a salvação das almas sem enfrentar o Império, o Templo e a Cruz.

Como teólogo, te proponho escrever um artigo sobre a Salvação tendo como tema a catástrofe da vida humana na Terra.

Um  afetuoso abraço,

Pedro.

*Pedro Ribeiro de Oliveira é sociólogo, autor de vários livros e articulador nacional do Movimento Fé e Política.

Resposta de Leonardo Boff

Pedro, meu amigo-irmão

Eu creio que Jesus não veio para mudar o curso da evolução. Se lhe contar a história da vida, notará que ao se constituírem os continentes (a partir do único, Pangeia) há 230 milhões de anos, entre 75-95% de todas as espécies de seres vivos desapareceram. Mas a Terra guardou sementes (os quintilões e quintilhões de micro-organismo escondidos no solo e a salvo de qualquer ameaça). A Terra demorou 10 milhões de anos para refazer a biodiversidade. E a refez e enfrentou outras grandes dizimações posteriores como aquela há 67 milhões de anos que fez desaparecer todos os dinossauros, depois de viverem mais de 120 milhões de anos sobre a Terra e outras tantas. Mas a vida, como uma espécie de praga, sempre sobreviveu.

Nada obsta que a nossa espécie que apareceu por último, violenta e assassina desde o começo do mundo, chegue ao seu clímax e desapareça. Mas não desaparece o Princípio criador de Deus-Trindade, de comunhão e de amor. Das ruínas fará um novo céu e uma nova terra, como sugere o livro do Apocalipse.

Lembre-se da sexta-feira santa. Os apóstolos todos fugiram ou o traíram. Só as mulheres, os geradores de vida, nunca o traíram e ficaram ao pé da cruz. O  Vivente morreu entre gritos de desespero até se entregar, confiante, dizendo: “em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46:meu princípio de vida). A ressurreição foi uma insurreição contra aquela justiça e aquele mundo de morte que o condenou, mas ela significa muito mais. A ressurreição antecipou o fim bom da história humana e do universo. Ele é o “novissimus Adam” 1Cor 15,45). 

Eu creio que o mistério pascal (vida-morte-ressurreição), especialmente a sexta-feira santa não só  foi inspiradora para Hegel que neste dia teve repentinamente a intuição de sua dialética (que ele a chama de a “sexta-feira santa teórica”), mas para  nós também. 

Podemos passar pela sexta-feira geral e terrenal com todas as suas agonias como as de Jesus. Mas não é o fim. Irromperá o novo que é a ressurreição. Não como reanimação de um cadáver como o de Lázaro, mas como realização de todas as potencialidades escondidas no homem Jesus de Nazaré e também em nós. Trata-se realmente daquilo que nas Escrituras se testemunha: a irrupção de um novo céu e uma nova terra. Elas virão do alto, quer dizer, de outra fonte de vida e de outro tipo de natureza. 

Bem diz Ernst Bloch: o verdadeiro gênesis não está no começo, mas no fim. Só então Deus, olhando tudo o que havia feito, achou que tudo estava muito bom”(Gn 1,31). Na verdade,  agora não  está tudo bem, pois há tanta maldade e desastres incompreensíveis, como o de São Sebastião e o rebaixamento das águas dos canais de Veneza que praticamente secaram.  Mas o fim será bom. 

Como diz nosso poeta maior Fernando Pessoa: “sonhamos com um mundo que ainda não experimentamos”. Agora ao final do novo regime climático, o terrível piroceno (do fogo), explodiremos e implodiremos para dentro de Deus como gostava de imaginar Pierre Teilhard de Chardin. Experimentaremos um mundo nunca vivido antes.

Esta nossa esperança vale para a atual situação calamitosa. Reside na ressurreição de Jesus que apenas começou e não acabou ainda porque seus irmãos e irmãs que somos todos nós, não chegaram à situação dele. A ressurreição de Jesus é um processo não terminado porque seus irmãos e irmãs ainda não ressuscitaram como ele. Como nos diz São Paulo: ”é na esperança que somos salvos”(Rm 8,24), portanto é algo ainda para o futuro.

Gosto do evangelho de São Marcos original. Ele termina Jesus, dizendo: “Ide  à Galiléia e aí me vereis”(Mc 16,7). E acaba assim o texto. Os milagres agregados, é consenso entre os exegetas, foram um acréscimo posterior. 

Portanto, estamos todos a caminho da Galileia quando então o Novo Ser (a ressurreição) vai se manifestar e nos fazer também novos seres ressuscitados, homens e mulheres. Essa é  minha esperança face às turbulências mortais da história especialmente da recente. O novo, o Cristo ressuscitado acabará de ressuscitar totalmente e se mostrará como o Cristo cósmico, presente em todos os espaços da Terra e do universo. E nós, transfigurados, participaremos desta  ubiquidade cósmica. Chegaremos ao fim do caminho para a Galiléia plenamente realizados. Enfim…

Grande e fraterno abraço 

Leonardo

Leonardo Boff escreveu sobre o tema desta discussão: A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição na morte, e Paixão de Cristo- paixão do mundo, Vozes.

Últimas