O 8 de janeiro diante da história

13/jan 08:00
Por Gastão Reis

É dúbia a comemoração do 8 de janeiro de 2023, agora em 2024. Longe estamos da unanimidade. Os atos de vandalismo lá ocorridos são inaceitáveis. Mas, em todo o processo, existem outros inaceitáveis a que o andar de cima  faz vista grossa, irresponsavelmente, em relação ao seu próprio comportamento errático. Vamos aos fatos que acabaram desembocando no 8 de Janeiro.

Logo após o resultado das eleições de 2022, surgiram manifestações no país inteiro na frente de quartéis, pedindo intervenção militar para impedir a posse de Lula. Rigorosamente, seria um golpe de Estado que não obteve adesão das Forças Armadas. Rotular de golpismo a reação de boa parte da população não vai ao fundo da questão. O Brasil tem um trauma histórico nascido em 1889 com a quartelada que proclamou a dita república. O dramático é que elas  se tornaram comuns, com as Foras Armadas atuando como atores políticos, em vários episódios de nossa história dita republicana.

O hábito não faz o monge, mas o mau hábito das intervenções militares passou a ser visto como parte de nossas práticas republicanas distorcidas. É como se não houvesse outra saída institucional, saída essa que era parte de nossa vida política até 1889, o parlamentarismo. Simplesmente o gabinete caía, ou seja, o governo, e eram realizadas novas eleições. Tudo isso se passava sem a presença de militares na vida política.

É hora de ver a questão do golpismo com outras lentes. Ruy Barbosa afirmou que a ditadura do Judiciário seria a pior delas, contra a qual, nas palavras dele, não se teria a quem recorrer. Lá no fundo, ele sabia que essas situações têm um elevado potencial de levar a revoluções e a golpes de Estado. Logo, golpes de Estado não são exclusivamente militares. Podem partir de tribunais superiores. É quando magistrados se valem de sua caneta poderosa para impor à população a vontade de um grupo, que não necessariamente envolve todo o Judiciário. Todos sabemos o que ocorre com tais tribunais em Cuba, Nicarágua e Venezuela. São ilegítimos no exercício de suas funções.

O depoimento em vídeo do ex-membro do STF, Marco Aurélio Mello, não podia ser mais claro ao afirmar que o STF ressuscitou Lula politicamente. E isso após declarações elogiosas de certos membros atuais do STF sobre a corajosa atuação de Curitiba no combate à corrupção. Mais: Lula havia sido condenado por unanimidade por três juízes em segunda instância. A corrupção bilionária no BNDES e na Petrobrás é fato consumado, pois o dinheiro foi devolvido. Em livro recentemente lançado, Marco Aurélio  faz sérias revelações sobre o comportamento inaceitável de membros do STF junto ao Exército, Marinha e  Aeronáutica. Foi dado sinal verde, segundo ele, e aí teve início o desmonte da Lava-Jato.

Quando o desembargador aposentado Sebastião Coelho afirmou, diante dos ministros do STF, olho no olho, que eles “eram as pessoas mais odiadas deste país pela população”, ele tinha sólidas razões para se expressar assim. A sequência em andamento de anulações de condenações de réus em processos bem documentados com base em filigranas jurídicas deixou a população indignada. A mais grave foi permitir que Lula fosse candidato. Ou será que jogamos fora a responsabilidade de quem nomeou um bando de corruptos para altos postos na Petrobrás e no BNDES, que custaram bilhões aos contribuintes?     

O simples fato de os atuais ministros se furtarem a embarcar em aviões junto com outros passageiros ou andar em locais públicos com receio de serem desrespeitados diz muito a respeito do ponto a que chegamos em matéria de desconexão entre o andar de cima e a população em geral. No caso de passageiros em voos comerciais não dá para qualificá-los de turba ignara. O desprestígio da Corte atinge também pessoas mais simples e trabalhadoras, que se sentem igualmente desrespeitadas.

Foi ainda muito significativa a ausência no evento de governadores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, regiões que concentram cerca de 2/3 da população brasileira. E onde a vitória coube ao adversário de Lula no segundo turno. Regiões estas onde há forte rejeição a Lula, que também se sente sem coragem de enfrentar locais públicos ou embarcar em aviões de carreira. Suas caríssimas e frequentes viagens ao exterior, onde está longe de ser levado a sério, são também motivo de repúdio em qualquer conversa de cafezinho no nossos dia a dia. Isto tudo tem nome e se chama ilegitimidade.

A alegação de que essa rejeição é apenas de bolsonaristas também não procede, bem como a de golpistas. Afinal, se compararmos o número de pessoas que participaram ativamente (poucos) dos atos de depredação dos edifícios públicos, sede dos três poderes, em relação à população total do país, estamos diante de um percentual irrisório de arruaceiros. Cabe agora especular sobre o veredito no futuro mais distante dos historiadores que certamente escreverão sobre o 8 de Janeiro.

Certamente vão apontar para o atual STF como um dos piores, senão o pior, de nossa História republicana. O discurso do ministro Barroso, no dia 8 de janeiro corrente, teve momentos de rara infelicidade. No Congresso, ele nos presenteou com a seguinte pérola: “Ódio, mentiras, e golpismo nunca mais.” Soou como a figura da projeção em análise freudiana. Aquele indivíduo que projeta suas próprias falhas no próximo. Produziu ainda outra pérola do seguinte tipo: “Jamais esqueceremos”.

A população em geral é que jamais esquecerá dos desacertos do STF. E com toda a razão. A gota d’água veio com duas decisões monocráticas de Toffoli. Ele afirmou em público a inocência de Lula; e, pouco depois, livrou da multa de 10 bilhões de reais da JBS, empresa que tem como advogada sua esposa. O atual STF está longe de poder encher a boca com o título daquele famoso discurso de Fidel Castro: “A História me absolverá”. Tudo leva a crer,  qual Fidel Castro, que a História não os absolverá. Vai apresentar a conta e dar a devida sentença. A conferir, mas apostando no veredito de culpados.

“Dois Minutos com Gastão Reis: “Democracia de grupelho”.

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