O ano em que seremos fortes

07/01/2017 11:20

2016 não prestou. Ano em que não fomos felizes, entulho, despejo de sedimentos, dores, quebraduras. Ferro-velho onde visitaremos nossa efêmera vida e vãs ambições. A 2017 vamos com débitos dessa kriptonita. Falta dinheiro, ânimo, força… E aí está nossa riqueza! Todas as possibilidades! Criatividade não nasce da fartura. Não é o conforto que possibilita a invenção. Quando o Apóstolo Paulo declarou “quando estou fraco, sou forte”, decretou a fórmula da vitória: quando não presto, sirvo.

 Franz Krajcberg é um polonês brasileiro. Naturalizou-se, em nossa natureza que ama. Habita, herói de romance, casa no alto da árvore, um pequi que escolheu para lar. A paixão por nossas matas e rios fez com que chorasse devastações de florestas, queimadas cruéis, criminosa imprudência de fazendeiros e descaso de governos. Mas com restos da floresta destruída, galhos secos, árvores partidas, nacos de paraíso chamuscados, ele faz arte. Da devastação, a maravilha. Árvore matada renasce árvore nova, por obra do artista criador, outra natureza dando sentidos à nossa percepção. Ele sabe. O que não presta, serve.

 Bispo do Rosário era pobre, inculto, negro e esquizofrênico. Biscateiro, boxeador, marinheiro, toda a vida em ofícios da miséria. Um dia teve uma visão. Dentro do Mosteiro de São Bento, declarou aos monges pasmados ser um julgador enviado por Deus para separar o joio do trigo. Considerado louco de pedra, acabou internado na Colônia Juliano Moreira. Deu para catar restos de papel, pano, linha, ferragens, sobras de tudo, nadas. Com isso bordava arte maior, refinamento barroco em mantos, estandartes, painéis. Um gênio que faria bonito ao lado de Aleijadinho ou Mestre Ataíde. Rosário era resto de gente, num hospício. Com detritos de coisas, reinventou-se. Ele sabia. O que não presta, serve.

Manoel de Barros era um poeta de palavras frangalhos. Lá das funduras do Pantanal desprezava rimas, não servia ritmos convencionais. Mas tecia harmonias inéditas, tiradas de palavras largadas em latas, no mato a apodrecer. Depois de estragadas, ele as colhia e delas fazia asas de flores. Dizia não gostar de “palavra acostumada”. Queria “ser lido pelas pedras”. E declarava: “Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas”. Barros sabia: o que não presta, serve.

 Gabriel Joaquim dos Santos, pobre filho de escravo com índia, não tinha escola ou riquezas. Passou 62 anos fazendo sua morada, em São Pedro da Aldeia. Olhava um resto de vaso quebrado. Servia. Pedaço de torneira velha. Servia. Azulejo esmagado. Servia. Concha largada pelas ondas. Servia. Casca de caracol, tampa de panela, fundo de garrafa verde. Tudo servia. Ao fim das contas, com engenho e arte, desses restos postos no chão, nas paredes e janelas, fez sua Casa da Flor, requintado camafeu barroco que encanta estudiosos e artistas do mundo todo, tombado Patrimônio Cultural do estado. Ele sabia: o que não presta, serve.

 Que entremos 2017 com essa consciência. Com nossos cacos, coração machucado, nossos restos, galhos queimados, alma doída, palavras que dormiram em formigueiros, derrotas que fizeram limo, vamos nós, a fazer deste ano uma Casa da Flor, Manto da Apresentação, poema pantaneiro, escultura de árvore. Mesmo que chova lá fora, em nosso coração uma luz se fará. 2016 não prestou. Nos deixou aos cacos. Por isso ele serve. A fé em Cristo dispõe: quando estamos fracos, somos fortes. Seremos fortes.

denilsoncdearaujo.blogspot.com

 

Últimas