O articulista desinformado, os fatos e o futuro

06/03/2021 09:34
Por Gastão Reis

Amaldiçoar as próprias raízes por desinformação é coisa para quem tem vocação para coveiro do futuro. O Brasil já vive um presente desalentador, mas a tribo dos destruidores do passado continua ativa. Foi publicado em O Globo, em 1.3.2021, um artigo de Miguel de Almeida com um título um tanto esotérico: “A edição genômica e os empresários bozochavistas”. Aponta corretamente nossa deficiência gritante em educação profissional tecnológica (EPT). No Brasil, os cursos técnicos atraem apenas 11% dos alunos enquanto a média nos países da OECD atinge 42%. Situação que reflete o desempenho medíocre em matemática dos alunos do ensino fundamental brasileiro.

Na metade do artigo, qual Transamazônica, que diziam ligar nada a coisa alguma, ele nos fala que estaríamos cometendo o mesmo erro ocorrido sob Pedro I e Pedro II. Ao longo do século XIX, os EUA avançaram bem mais do que o Brasil a ponto de chegarmos no final do Império com renda per capita de 1/3 da americana. Fica o sabor de que o Brasil parou no tempo sob Pedro II.

De fato, o crescimento americano foi maior que o do Brasil no período. Mas o autor acaba cometendo os mesmos equívocos do ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, em artigo publicado em O Globo e no Estadão, em 27.1.2019, intitulado “A visão do precipício”. Na época, redigi uma réplica em que inverti, de propósito, os termos do título dele para “O precipício da visão”, que foi publicado no Globo Online, em 11.2.2019, com outro título sem minha autorização. E também na Tribuna e no Diário de Petrópolis, em 5.2.2019, ambos com o título correto.

Em benefício da concisão, reproduzo abaixo dois parágrafos do meu artigo-réplica ao Prof. Gustavo Franco:

“Curiosamente, sendo ele economista, o ponto mais frágil do artigo foi o parágrafo em que aborda o crescimento da renda real per capita ao longo do Império. Toma o período que vai de 1820 a 1900, misturando alhos com bugalhos. Para reforçar seu argumento de crescimento acumulado de apenas 5% em oito décadas, ele incluiu no cálculo a primeira década republicana de 1890 como se fosse monárquica. Aquela década do novo regime foi um desastre em termos de PIB e renda per capita. A república começou com uma década perdida. Além da 1980, se deu ao pobre luxo de colecionar mais três perdidas.”

“Pesquisa recente, de 2013, de Tombolo, A. G & Sampaio, A. V., “O PIB brasileiro nos séculos XIX e XX”, nos informa que de 1820 a 1875, o PIB per capita cresceu 1,21% a.a., ou seja, praticamente dobrou no período. Causa estranheza tamanha discrepância em relação ao que diz o articulista, levando em conta ainda que, no acumulado da última década do Império, houve um aumento do PIB per capita de 17% e do PIB em 42%, segundo a mesma pesquisa muito bem fundamentada.”

Estes dois parágrafos foram a base de minha réplica ao economista Gustavo Franco e servem também para demonstrar que o sr. Miguel de Almeida pisou em falso. Adicionando-se os dois períodos, que praticamente cobrem os anos de 1820 a 1889, a renda per capita do Brasil teria crescido cerca de 134%, algo muito distante dos 5% de Gustavo Franco e da quase paralisia do PIB per capita para que a diferença fosse tão grande em 1889, como afirma Miguel de Almeida.

Mas este último nos brinda com afirmações sobre Pedro II e o início da república que colidem com os fatos históricos. Transcrevo suas palavras: “Durante seu reinado, (Pedro II) demonstrou horror ao empreendedorismo, à inovação e fechou os olhos ao tráfico de escravos”. E faz ainda um elogio rasgado ao desempenho espetacular da república na sua primeira década, novamente afrontando os fatos. Basta lembrar o episódio do Encilhamento de Ruy Barbosa em que inúmeras empresas criadas no papel foram à falência. Não sei se é um dos novos colunistas de O Globo, mas o jornal deveria ter mais cuidado em publicar tais despropósitos. Vamos aos fatos.  

Não tem fundamento dizer que Pedro II tinha horror a empreendedores e à inovação. Muito pelo contrário, o chamado bolsinho imperial concedia mais bolsas de estudos a estudantes de engenharia do que às chamadas humanas.  Quanto à inovação, é bom lembrar sua atitude de dar atenção ao stand de Graham Bell, ignorado pelo público, na grande Exposição Internacional Centenária, de 1876, em Filadélfia.  Testou o telefone e exclamou: “Meu Deus, isto fala!”. O Brasil foi o segundo país do mundo a instalar telefones. Também estavam lá outras novidades como a lâmpada elétrica, um telégrafo musical e a máquina de escrever. Onde, então, o horror à invenção de Pedro II?        

Mas a ofensa maior foi a de ter acusado Pedro II de ter fechado os olhos ao tráfico de escravos. Em reunião ministerial, em 1849, Pedro II chegou a ponto de dizer que abdicaria se a questão da suspensão do tráfico não fosse resolvida de uma vez por todas, como acabou sendo em 1850. Não só isso, ainda muito jovem, libertou os escravos da Quinta da Boa Vista, pagando-lhes salários. Em suas visitas Brasil afora, os fazendeiros sempre davam alforrias por saberem que era o melhor presente que podiam lhe oferecer. Quando foi assinada a Lei Áurea em 1888, 80% dos descendentes de africanos não eram mais escravos.  Ou seja, foram passadas leis e inúmeras inciativas oficiais (fundos públicos) e particulares de alforrias, compradas ou concedidas, bem antes de 1888.    

Aparentemente, até pessoas bem informadas, como deveria ser quem escreve em jornais, parecem não se dar conta do servicinho sujo bem feito pela república: o apagão da memória nacional do século XIX. Segundo o jornalista negro Tom Farias, autor de uma biografia da Carolina de Jesus, autora de “Quarto de Despejo”, foi o século de ouro dos negros no Brasil, culminando com a cidadania plena, um salto gigantesco em termos de combate à desigual-dade. Se a este indicador, agregarmos o de respeito ao dinheiro público, ou seja, de corrupção sob controle, é possível afirmar que também foi o nosso século de ouro. Já os séculos XX e XXI republicanos estão mais para de latão. Colocar sombras onde elas não existem apaga as luzes que herdamos de Pedro II para construir o futuro almejado. Boas árvores têm boas raízes.

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