O choque da hiper-realidade

02/08/2020 00:01

         A perplexidade talvez venha mensurar o choque que a realidade nos causa tanto nos atos de contemplação quanto na indignação. 

Já aplaudi várias vezes o Sol na pedra do Arpoador no Rio, com mais frequência na juventude. Lá, nas tardes de verão, ele, magnificamente, desfila soberano sobre o mar. Eu não era o único a aplaudi-lo. Centenas de pessoas o reverenciam, agradecem o belo espetáculo da natureza produzido pelo Astro Rei. Nunca um pôr do sol é igual a outro, cada dia tem a sua exclusividade. Matizes dos raios solares entre nuvens não se repetem. É a rotina do inédito.

Não tenho conta das vezes que fui ao Arpoador com uma solidão pesada e, depois de ver o mar refletindo os raios solares, voltava mais leve. Aquela paisagem era o meu ponto de carga e descarga.  Na natureza, vejo a perfeição divina.

         Hoje, distante do Arpoador, procuro as matas para contemplar os tons de verde, ouvir o canto das aves e fugir dos sinais do celular. Não há wi-fi. Mas a senha é: “pare, veja e ouça” – tudo junto.

Há uma paz quando se respira o ar na fonte. O correr das águas de uma nascente é que conta o tempo, torna-se mais forte quando a noite se aproxima. Sentir-se parte integrante desse universo nos ajuda a entender o conceito de harmonia e equilíbrio.

         É preciso exercitar a sensibilidade, aguçar a percepção para assimilar a poesia viva fora das palavras, à disposição dos nossos sentidos em momentos de comunhão.

          Para quem ama a natureza, o desmatamento da região amazônica é um golpe profundo no peito. Não se trata apenas do corte das árvores, existe uma fauna que depende daquele ambiente. A reação mundial contra a devastação da Amazônia é plenamente compreensível, uma vez que o planeta sofre com isso. A vida está muito além do agronegócio. É possível ter um desenvolvimento sustentável sem depredar o meio em que se vive. Grandes investidores internacionais vêm cobrando dos gestores do país uma política de preservação ambiental.

 Neste período pandêmico, causou perplexidade o maquiavelismo do plano de aproveitar o momento em que as atenções estão voltadas para as mortes provocadas pela Covid-19 e promover a degradação ambiental. O choque veio pela insensibilidade e pela crescente impunidade dos crimes ambientais. A imagem das regiões devastadas provoca uma profunda indignação pela irreversibilidade, espécies de animais podem ser extintas. É a perversidade planejada com chapa branca.

          O homem ainda não aprendeu a viver em sociedade. O desrespeito não é só em relação à natureza, ocorre também em relação ao seu semelhante. No poema “O Sobrevivente”, Carlos Drummond já afirmara: “Os homens não melhoram e matam-se como percevejos”.

         As cenas de covardia, injustiça, desrespeito, ofensas morais, quando caem nas redes sociais, recebem severas críticas. Agora quem planta vento já está colhendo tempestade. Cenas de agressões cotidianas não estão passando em brancas nuvens. As câmeras dos celulares estão sendo usadas para registrar flagrantes de violência.  A reação da sociedade diante da realidade exposta tem sido de indignação. O caudilho da arrogância, da prepotência, da carteirada já está sendo denunciado por quem não aceita discriminação. E aqui, vale lembrar os versos da canção de Belchior: “mas não se preocupe, meu amigo,/ com os horrores que  lhe digo./ Isto é somente uma canção/ a vida realmente é diferente/ quer dizer, ao vivo é muito pior”.

O “ao vivo” hoje chega pelas redes sociais. Flagrantes da realidade têm mostrado cenas desumanas. E a viralização delas tem provocado discussões sobre o fio da justiça. Diante disso, só quero dizer que o Cristianismo não serve como verniz da estupidez, nem da arrogância, porque aumenta as contradições. A contemplação da beleza da obra enaltece o autor. Mas quando a obra é danificada, torna-se uma desconsideração com quem a criou.

A Verdade que liberta é esta que se manifesta pelo amor à vida. E com ela, é possível ter a oportunidade de evitar que o homem se torne o lobo do próprio homem.

 

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