O complexo de vira-lata revisitado
Em outubro de 2013, nos dias 19 e 20 daquele mês, eu publiquei, respectivamente, no Diário de Petrópolis e na Tribuna de Petrópolis, um artigo intitulado “Complexo de Vira-lata e República”. Passados quase oito anos, o tema merece ser revisitado para cobrir outros aspectos não abordados no meu primeiro texto, onde eu datava o nascimento dele na república em 1889.
A expressão “complexo de vira-lata” do brasileiro foi uma daquelas tiradas do famoso cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. E pegou. Sim, o brasileiro tinha sua autoestima localizada na sola do pé. Mais aí vieram as Copas de 1958, 1962 e de 1970. O tricampeonato que trouxe para o Brasil em definitivo a taça Jules Rimet e a consagração merecida de Pelé como o maior jogador de futebol de todos os tempos. Segundo Nelson Rodrigues foi ele, um negro, que nos deu a carta de alforria para superar o complexo de vira-lata. Claro, sem esquecer Garrinha e os outros excepcionais companheiros de equipe.
Ou será que não foi bem isso?
Para evitar o enfoque salto alto, eu começo com o meu próprio caso quanto ao relativo desconhecimento que eu tinha de nossa história do século XIX. Ao regressar dos quatro anos em que estudei na Universidade da Filadélfia (1977-1980), eu saí de férias de verão e levei para ler a História de Dom Pedro II, em três volumes, de autoria de Heitor Lyra. Foi então que descobri a história mal contada que haviam me ensinado nos anos de ginasial e colegial daqueles tempos. E olha que eu gostava de história, tendo tido bons professores da matéria no saudoso e falecido Instituto Carlos A. Werneck.
Descobri depois as obras do historiador José Murilo de Carvalho sobre o século XIX (e XX), sem dúvida a maior autoridade viva sobre aquele período já independente de nosso passado. Livros como “A Construção da Ordem e Teatro das Sombras”, sua tese de doutorado na Universidade de Stanford, e outros como “Os Bestializados” e “Forças Armadas e Política no Brasil” me abriram os olhos sobre o que havia acontecido de fato com nosso país após a chegada da república de trambolhão e seus efeitos perniciosos que nos atazanam até hoje.
Cerca de 15 anos atrás, eu estive num encontro do SEBRAE, em Natal-RN, sobre empreendedorismo. Um dos palestrantes foi o falecido Prof. Carlos Lessa, profundo conhecedor de nossa história, que nos chamou a atenção para o fato de que, ao longo do século XIX, o brasileiro não tinha um problema de baixa autoestima (ou complexo de vira-lata) tamanha era a respeitabilidade, interna e externa, de Estado imperial brasileiro. E foi assim que confirmei minha suspeita de que o complexo de vira-lata nasceu com a república. E, pelo jeito, Nelson Rodrigues não se deu conta disso em seu triste diagnóstico sobre a personalidade nacional.
Como, então, se deu essa desconstrução de algo tão precioso? Em minha entrevista “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”, com mais de 22 mil visualizações no YouTube, eu dizia que a autoestima de um povo é sua alma. Aproveitei a oportunidade para completar: até para os ateus é arriscado perder a alma. FHC, de certa forma, aceita o fato ao dizer que falta alma ao nosso ar-cabouço político-institucional. Onde, então, ficou esta alma perdida? Quando alguém com a experiência dele diz isso, é evidente que nos falta algo essencial.
Basicamente a capacidade de o brasileiro manter os políticos sob rédeas curtas ao invés de ser manipulado por eles. Tomemos uma evidência atual entre muitas outras: Rodrigo Maia, então preside da Câmara, sequer colocou em votação a proposta do Partido Novo de destinar os dois bilhões dos Fundos Partidário e Eleitoral ao combate do coronavírus. Espertamente, buscou evitar constrangimentos a seus pares numa proposta em que as necessidades da população foram postas de lado. A glamourização em torno do dia da eleição, em que caberia ao eleitor votar bem, nos faz esquecer que o fundamental é o que ocorre entre as eleições. Para tal, voto distrital puro e revogação de mandatos (recall) são indispensáveis para poder controlar os políticos, nossos (hoje, supostos) representantes.
A atual conjuntura bem poderia ser descrita como desconjuntura, dado o grau de desajuste entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, em que cada um caminha para um lado sem a presença de um quarto poder moderador. O que não é dito à população é que o poder moderador continua vivo em toda Europa, em vários outros países, e no mundo de língua inglesa, exceto nos EUA. Todos eles têm quatro poderes: o Legislativo, o Judiciário, o Poder Executivo, exercido pelo Primeiro-Ministro, e o Poder Moderador, exercido pelo Chefe de Estado, presidente ou monarca.
O lugar comum de que existem três poderes, que são independentes e harmônicos, traz em si uma contradição em termos. Ou bem são independentes, ou bem são harmônicos. Se são independentes jamais serão sempre harmônicos. Se harmônicos, onde fica a independência? Daí a necessidade do quarto poder, exercido pelo Chefe de Estado, que entra em ação para gerar harmonia quando os outros três se desentendem. Exatamente a situação que o Brasil vive hoje sem ter a quem recorrer como nos tempos do Império. Foi assim que o país ficou à deriva, nos últimos 130 anos, sempre que surge uma crise grave. Mas quem foi rei não perde a majestade. Recuperar, adaptando, o que já tivemos no século XIX se tornou artigo institucional de primeira necessidade.
Nesse contexto, onde fica a autoestima do brasileiro diante de tanta desarmonia? No máximo, ela saiu da sola do pé para o tornozelo. Os fatos evidenciam que cada um dos três poderes trata primeiro de si. O Brasil fica em quarto lugar na lista de prioridades. Diante de tamanho descalabro, nem mesmo a lembrança dos tempos áureos de Pelé consegue reerguer nossa autoestima. O complexo de vira-lata parece estar de volta diante da impotência das pessoas face ao que vem acontecendo. Mas, passada a pandemia, a reação da população virá, como já veio em nossa história. Nada de desânimo!
* Gastão Reis é economista e empresário.