O coronel com carreira incomum e os segredos das ações dos militares

07/out 08:10
Por Marcelo Godoy / Estadão

Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. A hipótese de que pormenores, aparentemente negligenciados, possam revelar fenômenos profundos, de notável alcance, é o que o historiador italiano Carlo Ginzburg chama de “ponto essencial do paradigma indiciário”, que ele mesmo reconhece ter penetrado e modelado, profundamente, as ciências humanas.

Pode-se assim reconhecer e compreender a marca, a autenticidade e a engrenagem de uma instituição por meio do comportamento de seus homens. A vida dos indivíduos nos oferece o mesmo material para a compreensão de seu tempo e de seu espaço. Os romancistas foram os primeiros a compreendê-lo, quando buscavam capturar os tipos e os comportamentos exemplares, como o espanhol Cervantes em suas novelas.

A trajetória do coronel Romeu Antonio Ferreira no Exército brasileiro é uma dessas histórias negligenciadas, que podem revelar fenômenos profundos que ajudariam a compreender os papéis desempenhados pela Força Terrestre nos últimos 50 anos. Nascido em 1940, numa família meio árabe e meio italiana, ele foi um dos mais importantes oficiais da inteligência militar no País. Morreu no dia 14 de agosto.

Não lhe prestaram homenagens, bem como não sofreu o escracho de seus desafetos. Gostava de repetir que um pouco de história não faz mal a ninguém. E começava a contar que foi a partir de 1965 que oficiais das Forças Armadas passaram a ser enviados ao Panamá para cursar a Escola das Américas, em Fort Gullick. Era lá, segundo contou em uma de suas últimas palestras, no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), do Rio, em 14 de setembro de 2023, que os Estados Unidos “promoviam cursos de inteligência e de segurança”.

Romeu dizia que foi aproveitando os conhecimentos trazidos do Panamá que começou a funcionar no Centro de Estudos de Pessoal (CEP), do Exército, em 1966, um curso de informações, categoria B. Destinava-se a capacitar oficiais das Forças Armadas e policiais. No ano seguinte, começaram os cursos Categoria C, para subtenentes e sargentos. “Durante 6 anos, de 1966 a 1971, o CEP realizou 16 cursos de Informações, formando quase 300 alunos para a atividade”, contou Romeu.

Cadete da Arma de Artilharia na turma de 1962 da Academia das Agulhas Negras, ele descobriu o universo da espionagem e das informações em 1969, quando fez o curso no CEP. “Acabei em primeiro lugar e fui convidado para ser instrutor.” Em 1972, a EsNI, Escola Nacional de Informações, começaria a funcionar com Romeu como instrutor. “Nessa época estávamos em plena luta armada, estava um pega pra capar, morrendo gente, e eu estava como instrutor.”

‘DOIS BRAÇOS’. Lia jornais e guardava documentos em casa para contar sua história, o que fazia consultando os textos de suas palestras. Lembrou que, nos anos 1970, homens de operações dos centros de informações militares – CIE (Exército), Cenimar (Marinha) e CISA (Aeronáutica) – eram convidados para dar aulas no CEP e na EsNI. “Convidávamos o pessoal que estava na luta armada para ensinar. O Pablo ministrou aula lá, o Doutor Pablo (o coronel Paulo Malhães, integrante do CIE, que atuou em operações que dizimaram grupos como a Vanguarda Popular Revolucionária, e no desaparecimento do corpo do ex-deputado Rubens Paiva).”

A repressão na época estava centralizada nos Destacamentos de Operações de Informações (DOI) de cada Exército. Para Romeu, a criação dos DOIs embutia um problema citado em sua palestra: a concentração em uma mesma organização das atividades de informações e de operações. “Num regime autoritário, por exemplo, a KGB, ela prendia, ela era informações, inteligência e prendia. A Gestapo ela prendia, buscava os dados e prendia. É muito poder no meu entender. O que eu chamo de política de dois braços? Um braço de coleta de dados e outro braço dá porrada. Inteligência em um braço e operações em outro braço. Na minha opinião, em um estado democrático de direito, tem de separar essas duas funções, inteligência e segurança.”

Em agosto de 1975, foi mandado ao 1.º Exército, o atual Comando Militar do Leste (CML). Quem comandava ali era o general Reynaldo Mello de Almeida, amigo do presidente Ernesto Geisel. Ele tinha como chefe da 2.ª Seção do Estado-Maior (Informações) o coronel Sérgio Mário Pasquale. Após um breve estágio, Pasquale chamou Romeu em outubro e disse: “Olha, você vai se apresentar amanhã no DOI, mas a missão que vou lhe passar é a seguinte: A luta armada está acabando, daqui a pouco nós não vamos mais prender, e você está indo lá com a missão de reformular gradativamente o DOI do 1.º Exército para um órgão exclusivamente de informações. Não vai chegar lá e mudar, vai devagar”.

‘SNI’. E assim foi. “Muitos anos mais tarde eu fui me aperceber que eu nada mais fui do que um instrumento da política do Geisel de distensão lenta, gradual e segura. E uma das tarefas era acabar com esse componente de segurança do DOI.” Ele ainda participaria da operação que cooptou Manoel Jover Telles, o dirigente do PCdoB que levou os militares até a reunião do comitê central da sigla, então clandestina, na Lapa, na zona oeste da capital paulista. A parte final da operação, a cargo dos militares de São Paulo, terminou com a chacina de Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Baptista Drummond, em 16 de dezembro de 1976.

Romeu já era major e subcomandante do DOI do Rio quando, em 1980, um grupo de subordinados o procurou. Apresentaram-lhe uma proposta: explodir bombas no show do dia do trabalhador, no Riocentro. “E era na caixa de força. O objetivo era apagar a luz e acabar com o show. Eu proibi. Não era para ser feito e não foi feito.” Em janeiro de 1981, Romeu deixou o DOI para cursar a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Com ele fora do destacamento, o caminho ficou livre para a explosão de 30 de abril de 1981.

Eram 21h20. A primeira bomba explodiu antes da hora no estacionamento. Ela eviscerou o sargento Guilherme Pereira do Rosário, do DOI, que a carregava no colo, sentado ao lado do chefe, o capitão Wilson Dias Machado, o Doutor Marcos, que dirigia um Puma. Trinta minutos depois, outra bomba explodiu na casa de força. O atentado marcaria o fim das ações terroristas dos militares contrários à abertura política. “Aquilo foi coisa do SNI (Serviço Nacional de Informações), com a participação de dois ex-subordinados meus.”

VERSÃO MILITAR. Romeu não voltou mais ao DOI. Mas guardou os papéis, como o primeiro interrogatório de Jover Telles. Ao concluir a Escola de Estado-Maior, seguiu para o Centro de Informações do Exército.

Foi ali que escreveu a Apreciação s/nº de 27 de março de 1984, que recebeu a assinatura de 13 colegas da Seção 102 (Informações) do CIE. O militar sugeria aos superiores que fosse escrita uma história, um livro com a versão dos militares sobre o combate ao comunismo. Pensavam que os jovens oficiais e praças poderiam ser influenciados pelo que era divulgado pela imprensa.

“Sabemos que há muita coisa que não pode ser contada. Sabemos, entretanto, que há muita coisa que pode e deve ser contada. Temos os dados e os fatos. Falta-nos a vontade e a decisão.” Foi só no ano seguinte que o documento foi parar nas mãos do general Tamoyo Pereira das Neves, então chefe do Centro, que o levou ao ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. Nascia, assim, o chamado Projeto Orvil, do qual Romeu foi um dos dois redatores principais.

O Orvil representava uma mudança de instrumento para o combate aos comunistas. O Exército deixara para trás as prisões, sequestros e desaparecimentos dos anos 1970 com a abertura política. Com a legalização dos partidos comunistas, em 1985, estava fechada também a via policial-judiciária para neutralizá-los por meio da Lei de Segurança Nacional. Tratava-se então de transferir o embate à esfera cultural. E aí entrava o Orvil. O livro com quase mil páginas ficou pronto, contudo Leônidas desistiu de publicá-lo. Não queria briga com os civis.

Romeu não se rebelou contra a decisão do ministro. Manteve uma cópia do Orvil em casa. Quando Romeu deixou o CIE, no qual chefiara as Seções 102 e 104 (Operações), a Guerra Fria se aproximava do fim, com o desmantelamento URSS. Abria-se espaço para a pacificação da América Central, com o fim das guerras civis na Nicarágua e em El Salvador.

NO EXTERIOR. Entre novembro de 1991 e maio de 1993, o coronel esteve a serviço da ONU como chefe do escritório regional militar e chefe do estado-maior da Divisão Militar da ONUSAL, a força de paz de El Salvador. Ali se tornou um interlocutor da guerrilha. Do período, Romeu mantinha memórias, como a foto que fez com a deputada federal Benedita da Silva e com a presidente da Casa Brasil-El Salvador, Vanda Pignato.

Ou ainda a viagem que fez com a deputada até Perquín, a ex-capital da guerrilha, bem como o churrasco que lhe ofereceu em sua casa, em San Salvador. Reuniu ali as brasileiras e parte da chefia da FMLN. Sabia entreter os convidados – o líder comunista Schafik Handal costumava ir aos churrascos do coronel. Outra vez uma pasta com documentos reunia suas sentenças e lembranças.

O relatório da missão de observadores brasileiros na ONUSAL, mantido em segredo por 30 anos, era um deles. Ele mostrava que o coronel fizera uma radiografia das forças políticas de El Salvador. Expôs ali desde as acusações de corrupção às Forças Armadas e a pouca combatividade de unidades do Exército na guerra civil, até as ações da guerrilha, que aproveitou as falhas dos adversários para manter o impasse militar e forçar o governo a negociar a paz. Estava pronto para documentar. Sabia que sem memória não há história.

Romeu acompanhava a entrega das armas da guerrilha. “Para a FMLN, o pessoal da ONU estava ali para salvá-los.” Em 24 de junho de 1992, o secretariado da ONU “expressou seu desejo” de que Romeu fosse enviado à missão em Roma. Lá, como em El Salvador, ele fez amigos na guerrilha que lutava contra o governo moçambicano. “Queriam que eu fosse para Moçambique, mas não fui. E, logo após o acordo, a ONU decidiu mandar seus capacetes azuis para Moçambique.” Voltou, então, ao Brasil cheio de documentos.

DOUTRINA DE INTELIGÊNCIA. Romeu estava já na reserva, em 1994, quando recebeu um telefonema do amigo coronel Paulo Laranjeira Caldas, então chefe da 2ª Seção do CML. Em 30 setembro de 1994, começou a trabalhar com ele no CML. Iam organizar a Operação Rio, a primeira grande operação do Exército de combate ao crime na cidade. Conta Romeu:

“Eu disse ao ‘Laranja’ que gostaria de ajudar na organização da seção, da Subseção de Operações e criar, na Subseção de Análise, uma estrutura para iniciar o acompanhamento do crime organizado. Ele estranhou este último pedido e eu respondi que, na minha opinião, o crime organizado estava desenvolto, sem amarras, crescendo muito e que, mais cedo ou mais tarde, seria quase que uma obrigação do EB (Exército Brasileiro) auxiliar as polícias, no mínimo, com a Inteligência Militar. Ele concordou, mas disse que, pelo ineditismo, teria que solicitar autorização ao comandante do CML. E foi, a partir daí, criado um setor de análise para a produção de conhecimentos sobre o crime organizado.”

A operação começou em 9 de novembro de 1994, sob o comando direto do recém-promovido a general de brigada Roberto Jughurta Câmara Senna, outro amigo de Romeu e seu companheiro da turma de 1962 da Academia. “Os dois primeiros meses da Operação Rio foram decisivos para a Inteligência. O pequeno setor de análise do crime organizado da 2.ª Seção transformou-se, naturalmente, no Setor de Análise de Inteligência da Operação Rio. O efetivo aumentou, de 6 para mais de 30 analistas, que foram cedidos por todas as áreas de Inteligência federal e estadual do Rio.”

A ação levaria o coronel a ser chamado pelo governador Marcello Alencar para criar o Centro de Inteligência de Segurança Pública (CISP), do Rio. Em quatro anos, Romeu reuniu ali um arquivo de criminosos com mais de 80 mil nomes. Em 1999, o coronel entrou em conflito com o secretário Luiz Eduardo Soares, que o acusou de grampear os telefones do Palácio da Guanabara, pelo que o oficial processou Soares. Em 2003, voltou à secretaria e, em 2005, elaborou a Doutrina de Inteligência de Segurança Pública do Rio, a primeira do Brasil.

Raros militares passaram por áreas tão distintas até a redemocratização. Romeu viveu a luta armada, a abertura, a resistência à redemocratização, o fim da Guerra Fria, a guerra cultural, as forças de paz e a guerra ao crime organizado.

Sua carreira é acompanhada de “sinais e indícios”, que permitem decifrar os papéis assumidos pelo Exército nos últimos 50 anos. Mas também ajuda a compreender a preservação dos documentos, as escolha do que neles constou e o que se devia evitar ou silenciar, a fim de se construir a memória de um grupo. Ao analisar esse conjunto, o historiador surpreenderá até o público de suas palestras. Não é pouco o que coronel deixou.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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