O direito “achado nas ruas”
Assistindo pela televisão à recente reunião do Pleno do Supremo, ouvi um Ministro referir-se de modo crítico ao “Direito achado nas ruas”, alusão ao simples bom-senso usado para avaliar se um critério, ação ou fato é justo ou injusto. Concordo que o bom-senso não pode suprir o desconhecimento de aspectos processuais, técnicos e outros só acessíveis academicamente; mas em contrapartida, parece-me existir o risco da recíproca, seja a mera técnica alijar da reflexão o bom-senso, com danos até maiores. O linguajar precioso não impede decisões e atitudes que possam ferir a lógica popular; ora, “todo o poder emana do povo” diz a Constituição, mas este princípio não vale dez réis de mel coado.
Exemplo: na Constituição Federal, o artigo 5º elenca os direitos fundamentais a todos garantidos. Entre eles, o de número XX: “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.Fui averiguar no dicionário o entendimento do verbo “compelir”. O Aurélio digital respondeu: “compelir: 1 – obrigar, forçar, constranger (a fazer alguma coisa); 2 – usar de compulsória; 3 – obrigar pela força da lei, por autoridade superior”. Fui ver o que era compulsória: “que compele ou obriga”. Em termos de bom-senso, a norma não deixa dúvida: ninguém pode ser obrigado, por força de lei ou de autoridade superior, a associar-se ou permanecer associado.
Mas temos o artigo 14, 3º, V. Leio ser condição de elegibilidade a filiação a partido. Sem filiação, não há como ser candidato a cargo público eletivo. Permanece, só, a obrigação de votar em quem não se escolheu. Lembro que somos cerca de 147 milhões de eleitores, dos quais 17 milhões são filiados a partidos (dixit TSE), e nada menos de 130 milhões não o são, por indiferença ou recusa consciente. De uma penada, proibiram o candidato avulso, criaram o monopólio de seleção de candidatos e o conseqüente cartel de partidos, as eleições deixaram de ser diretas, dividiram o eleitorado em duas categorias com direitos diversos, e chutaram o art. 5º, XX, para o alto.
A exigência de filiação a um partido para ser elegível corresponde a ser “compelido”. Dois dispositivos contraditórios me dão, um, o direito de não ser compelido a me associar nem permanecer associado; e outro, me compele a filiar-me se quero ser plenamente cidadão. O Dicionário dos Sinônimos me assegura que filiar-se é sinônimo de ingressar, associar-se. Volto ao Aurélio a ver a definição de fundamental: “fundamental: 1 – que serve de fundamento; 2 – essencial, principal”. Se uma das duas normas conflitantes deve prevalecer, pois deverá ser a principal, sugere o “Direito das ruas”? Que aduz não ser o único erro primário da CF, que confunde cidade com município (art. 182), e inverte a ordem das datas do calendário orçamentário (art. 35 ADCT). Sem correção há 30 anos.
Vejo no absurdo acima uma oportunidade para a redenção de nossos partidos que, em sua maioria, tornaram-se máquinas de poder e enriquecimento. A implosão do monopólio de seleção de candidatos com a concorrência salutar dos avulsos, em particular nos Municípios, porá fim à marcha da decadência política e administrativa em que nos meteram.