O drama invisível e os altos riscos que vivem os moradores de rua

06/08/2019 14:25

Numa manhã de quarta-feira, quando nossa equipe chegou na Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), Anderson* já tinha tomado banho e estava a nossa espera. Na verdade, ele esperava pelo café, mas como foi avisado que iríamos até lá para conhecê-lo, ele aguardou. Quando me sentei ao seu lado, Anderson falou da preocupação com um resfriado que tinha acabado de pegar. “É a situação de rua né, a gente vive na rua, ai fica gripado”. 

Anderson tem 43 anos, mora na rua há 2 anos e meio. Caçula de uma família de sete irmãos, só tem contato com a mãe, que também mora em Petrópolis. Mas a visita pouco, ele diz que a relação com ela não é muito boa. Antes de ir parar nas ruas, ele trabalhava como pintor, mas há, pelo menos, cinco anos não consegue pegar um serviço. “A gente depende de renda para manter a vida em dia, e quando zera, fica muito difícil”, disse. 

Por causa do rompimento com os familiares, e sem ter como pagar as despesas básicas, foi parar nas ruas. Anderson disse que não bebe e nem usa drogas, mas durante a conversa ele se perde nas lembranças. Algumas vezes contava histórias confusas ou repetia o mesmo assunto. Sua maior preocupação era com o resfriado que incomodava o nariz. 

Todos os dias, Anderson acorda às 6h e vai no Caps AD III (Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas) da Prefeitura, vizinho do CDDH, na Rua Monsenhor Bacelar. Toma café e faz uma horinha para tomar banho no Centro de Defesa. “Depois que eu tomo banho, saio para catar umas latas. Porque ai já comi e ficar sem fazer nada é ruim”. Pergunto quanto ele ganha em média com as latinhas, ele não sabe dizer. Quando consegue juntar um quilo, leva em um comprador que negocia por, em média, R$ 3,50.

Sobre as outras refeições, ele conta que costuma ganhar uma refeição de um comerciante em um bar e restaurante no centro da cidade. Todos os dias 15h30 ele passa lá para ganhar uma quentinha. Anderson anda sozinho e guarda suas coisas em algum cantinho pela cidade. Enrolou na conversa e preferiu não contar onde. Dorme em uma das praças do Centro. Quando chove, ele diz que se protege com uma lona. Durante o dia, anda procurando latas. No meio da nossa conversa, ele expressa que está cansado. Pergunto se trabalhou muito catando latas durante a Bauernfest (nossa conversa foi na primeira semana da 30ª Bauernfest), ele responde que só no primeiro dia, no segundo já ficou gripado. “Eu estou febril, ai é melhor não abusar da friagem”. 

Perguntei se fez amigos na rua, ele responde que não. Disse que é cristão e sua essência é a humildade e que os amigos que fez na rua não eram assim. Contou da vez que rompeu com um amigo por causa da promessa de um empadão que não foi cumprida. O rompimento social e familiar marcaram a vida do Anderson. Ainda que sozinho, nas ruas, ele tem o desejo de voltar a morar na casa que não conseguiu manter. Quando perguntei se tinha vontade de sair da rua, Anderson respondeu: “Tenho muita. Estou só esperando arrumar um emprego, ai vou sair”.

Enquanto conversava com Anderson, Rogério* chega para o banho e o café no CDDH. Rogério tem 57 anos, e há 6 meses mora na rua. Meses, dessa vez. Ele morava sozinho em uma casa de familiares, mas não conseguia pagar as despesas de água e luz com o trabalho de cuidador de carros. Quando perguntei porque acabou indo morar nas ruas, ele disse que preferiu evitar problemas com os parentes. “Dos problemas surgem coisas piores e estou procurando evitar os problemas até comigo mesmo”.

Rogério sempre morou sozinho. Em alguns momentos na conversa exitou e fugiu de alguns assuntos para não dar detalhes de como foi o rompimento familiar. Contou que brigou com uma irmã e que a família é toda “embaralhada”. Ele é o caçula entre os cinco irmãos. Seus pais são falecidos. Durante o dia, Rogério levanta cedo, toma um banho e o café no CDDH. Almoça no restaurante popular e à noite trabalha como cuidador de carros. 

Perguntei sobre o trabalho, ele diz gostar do que faz. “Antes de morar na rua, eu tomava conta de carros. Tomo conta porque sou muito conhecido. Cuidava de carros de dia e à noite, mas agora entrou essa firma (fazendo referência ao rotativo). Agora ficou meio ruim, aí só à noite mesmo”. 

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Nas ruas, Rogério também anda sozinho, parece ser uma característica das pessoas em situação de rua que tem transtornos mentais. Perguntei se ele fez amigos, ele respondeu que prefere não fazer amigos nas ruas. Nesses seis meses, encontrou um lugar escondido para passar as noites. “As roupas eu guardo no mato, no meu ‘guarda-roupa’ ”, disse. Mas garante que isso é provisório, até poder alugar uma casa. “Se bobear a pessoa fica na rua direto. Morar na rua é ruim, é frio, é chuva. Quando chove já tem o cantinho da chuva”.

A renda que consegue com o trabalho de cuidador de carros, às vezes, chega a R$ 50, às vezes não consegue nada. Rogério frequenta o CDDH há bastante tempo. Antes de brigar com os familiares, ele trabalhava na rua durante o dia, tomava banho e fazia as refeições no Centro de Defesa e à noite voltava para casa. Ainda que sua casa não tivesse energia elétrica, porque ele não conseguia pagar a conta. No nosso encontro, perto dos primeiros dias de inverno, sua preocupação era com o frio. “O ruim é o frio né. No frio fica pior”. 

Assim como o Rogério e o Anderson, o CDDH recebe outras pessoas que estão em situação de rua, principalmente, pessoas com transtornos mentais. A maioria rompeu os laços familiares e ainda que tenham casa ou família próxima, não conseguem voltar ao convívio social com os parentes. Quem vive na rua não enfrenta só a extrema pobreza e a ausência de recursos básicos, mas a discriminação e a invisibilidade empurram essas pessoas cada vez mais para a margem social. 

“O maior desafio na cidade é a lógica que nosso público tem de que eles têm direitos demais. Como se estar deitado na praça fosse gozar de plenos direitos. Na verdade isso é uma ausência de direitos. As pessoas têm dificuldade de entender que não ter moradia é uma ausência de direitos, não ter acesso à saúde, é uma ausência de direitos…”, explica Carla de Carvalho, coordenadora do CDDH.

O Centro de Defesa iniciou, em 2004, o projeto Pão e Beleza que dá assistência  à população em situação de rua. Em alguns períodos contou com financiamento, onde desenvolvia oficinas, atividades de lazer, custeava cursos profissionalizantes e trabalhava a reinserção social e familiar dos assistidos, além do encaminhamento e acompanhamento em demandas por equipes técnicas. Mas hoje, sem verbas, o Centro consegue garantir apenas higiene (banho e troca de roupas) e voluntariamente um café. Por causa do transtorno mental, muitos ficam resistentes ao atendimento ofertado pelos equipamentos de assistência da Prefeitura e acabam recorrendo ao CDDH. 

A situação de rua e isolamento social, principalmente para as pessoas que têm transtornos mentais acaba agravando o estado de saúde. O abuso de álcool e drogas, às vezes, é o motivo que leva a pessoa à situação de rua, e muitas vezes é a consequência de morar nas ruas. Perambulando dia e noite, ocupam praças e calçadas, e quando são notados, na maior parte das vezes é com olhar de indiferença e incômodo. “Se ele estiver sozinho, isolado, ele vai continuar invisível e ninguém vai perceber. De vez em quando, alguém vai dar um prato de comida, um cobertor. Mas ele vai continuar lá. Se ele tenta ocupar um espaço, que é determinado por um grupo social que não é o espaço daquela pessoa, como praças, Centro Histórico, ai é considerado um problema”, completa Carla. 

Não há proibição para que qualquer cidadão possa ocupar e até dormir nas ruas. Mas, a rua é de todos. Os direitos e os deveres da população de rua caminham lado a lado. Uma das maiores críticas que os equipamentos de assistência social escutam é que: “eles não querem sair da rua”. “Ao mesmo tempo que a gente fala que não quer que eles ocupem as praças de forma que o restante da população não possa ocupar. A gente quer que eles tenham condições de retomar à vida que eles perderam. Conseguir junto com eles e não por eles, uma mudança de vida. Porque ninguém deve impor uma mudança”, diz Carla. 

O trabalho de resgate da cidadania e retomada da vida dessas pessoas é um enorme desafio. Porque não há fórmula mágica que consiga englobar indivíduos com necessidades tão diferentes em um mesmo pacote. “Existe a intenção da nossa sociedade de colocar todo mundo desse problema social dentro de um pacote e extinguir. Como se fosse um problema do outro, não fosse nosso. Como se nunca fosse nos afetar, coisa que não é assim”, disse a coordenadora. No Centro de Defesa, já passaram pessoas que viveram em diferentes classes sociais e que estavam em situação de rua. Professor, chefe de cozinha, caminhoneiros, pessoas que ocupavam cargos altos em grandes empresas, mas que por alguma razão acabaram indo parar nas ruas.

O estigma social de que pessoas que vivem em situação de rua gozam de direitos e escolhem não sair daquela situação, em nada contribui para sua reinserção e resgate da cidadania. Pelo contrário, fortalece a visão marginalizada e de invisibilidade. “O trabalho (de assistência à população de rua) sofre um grande preconceito, porque as pessoas não conseguem entender que eles não têm direito nenhum. Tem alguns que não querem nada? É óbvio que tem, mas isso também existe na população domiciliada. Ah! Mas eles não querem ir para o abrigo porque fazem uso de drogas. Mas isso também acontece em área domiciliada, só que dentro de casa a família contorna. Quando a pessoa cai em situação de rua, o problema fica visível, fica exposto”. 

 

(*os nomes dos personagens foram substituídos para preservar suas identidades)

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