O escândalo da cruz
O Evangelho (Mc 8, 27-35) nos apresenta Jesus com os seus discípulos em Cesareia de Filipe. Enquanto caminham, Jesus pergunta aos Apóstolos: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” E depois que eles apresentaram as várias opiniões que as pessoas tinham, Jesus pergunta-lhes diretamente: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mc 8, 29). O momento escolhido para lhes colocar esta questão não é sem significado. Jesus encontra-se num ponto de viragem decisiva da sua vida. Sobe para Jerusalém, para o lugar onde será realizado, através da Cruz e Ressurreição, o Acontecimento central da nossa salvação. É também em Jerusalém que, depois de todos estes acontecimentos, vai nascer a Igreja. E, neste momento decisivo, Jesus começa por perguntar aos seus discípulos: “Quem dizem os homens que Eu sou?” (Mc 8,27), recebendo deles respostas muito variadas: João Batista, Elias, um profeta… Ainda hoje, como ao longo dos séculos, aqueles que, de diversas maneiras, se cruzaram com Jesus no seu caminho têm a sua resposta a dar. A resposta de Pedro é clara e imediata: “Tu és o Cristo”, isto é, o Messias, o consagrado de Deus, o enviado para salvar o seu povo. Portanto, Pedro e os outros Apóstolos, ao contrário da maior parte das pessoas, creem que Jesus não é só um grande mestre, ou um profeta, mas muito mais. Têm fé: creem que n’Ele está presente e age Deus. Mas logo após esta profissão de fé, quando Jesus, pela primeira vez anuncia abertamente que terá que sofrer e morrer, o próprio Pedro opõe-se à perspectiva de sofrimento e de morte. Então Jesus deve repreendê-lo com vigor, para lhe fazer compreender que não é suficiente crer que Ele é Deus, mas estimulado pela caridade é preciso segui-Lo pelo seu mesmo caminho, o da Cruz(Mc 8, 31-33). Jesus não nos veio ensinar uma filosofia, mas mostrar-nos um caminho, aliás, o Caminho que conduz à vida.
Este caminho é amor, que é a expressão da verdadeira fé. Se alguém ama o próximo com o coração puro e generoso, significa que deveras conhece a Deus. Se ao contrário alguém diz que tem fé, mas não ama os irmãos, não é um verdadeiro crente. Deus não habita nele. Afirma São Tiago: “… a fé, se não se traduz em obras, por si só está morta”(Tg 2, 17). Diz São João Crisóstomo, comentando o trecho citado da Carta de Tiago: “Uma pessoa pode até ter uma reta fé no Pai e no Filho, assim como no Espírito Santo, mas se não tem uma vida reta, a sua fé não lhe servirá para a salvação. Portanto, o que lês no Evangelho: ‘A vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste’ (Jo 17, 3), não penses que este versículo seja suficiente para nos salvar: são necessários uma vida e um comportamento puríssimos”.
Disse São João Paulo II, em 1980: “Todos nós conhecemos esse momento em que já não basta falar de Jesus, repetindo o que os outros disseram, em que já não basta referir uma opinião, mas é preciso dar testemunho, sentir-se comprometido pelo testemunho dado e depois ir até aos extremos das exigências desse compromisso. Os melhores amigos, seguidores, apóstolos de Cristo, foram sempre aqueles que perceberam um dia dentro de si a pergunta definitiva, incontornável, diante da qual todas as outras se tornam secundárias e derivadas: “Para você, quem sou Eu?” Todo o futuro de uma vida “depende da nossa resposta nítida e sincera, sem retórica nem subterfúgios, que se possa dar a essa pergunta”.
Essa pergunta encontra particular ressonância no coração de Pedro, que, movido por uma graça especial, respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Jesus chama-o bem-aventurado (Feliz és tu, Simão…) por essa resposta cheia de verdade, na qual confessou abertamente a divindade dAquele em cuja companhia andava há vários meses. Esse foi o momento escolhido por Cristo para comunicar ao seu Apóstolo que sobre ele recairia o Primado de toda a sua Igreja: “Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la…”.
Pedro confessou sua fé no Cristo, Filho de Deus vivo, graças à escuta de sua palavra e à cotidiana convivência. O Discípulo reconheceu o Messias porque a revelação do Pai encontrou nele abertura e acolhida. Quer dizer, descobre a verdade dos desígnios de Deus quem se deixa iluminar pela luz da fé. Com razão, reconhece o Documento de Aparecida: “A fé em Jesus como o Filho do Pai é a porta de entrada para a Vida”. Como discípulos de Jesus, confessamos nossa fé com as palavras de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (DAp, 100). A fé é um dom de Deus, é uma adesão pessoal a Ele. Crer só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo.
Para dar uma resposta convincente de fé, os cristãos precisam conhecer a fundo Jesus Cristo, saber sempre mais sobre sua pessoa e obra, pela leitura e meditação dos Evangelhos e pelos encontros com Ele por meio da ação litúrgica, em particular, dos Sacramentos.
“Tu és Pedro…”. Pedro será a rocha, o alicerce firme sobre o qual Cristo construirá a sua Igreja, de tal maneira que nenhum poder poderá derrubá-la. E foi o próprio Senhor que quis que ele se sentisse apoiado e protegido pela veneração, amor e oração de todos os cristãos. Se desejamos estar muito unidos a Cristo, devemos estar sim, em primeiro lugar, a quem faz as suas vezes aqui na terra. Ensinava São JosemariaEscrivá: “Que a consideração diária do duro fardo que pesa sobre o Papa e sobre os bispos, te leve a venerá-los, a estimá-los com verdadeiro afeto, a ajudá-los com a tua oração” (Forja, 136).
O nosso amor pelo Papa não é apenas um afeto humano, baseado na sua santidade, simpatia, etc. Quando vamos ver o Papa, escutar a sua palavra, fazemo-lo para ver e ouvir o Vigário de Cristo, o “doce Cristo na terra”, na expressão de Santa Catarina de Sena, seja ele quem for. O Romano Pontífice é o sucessor de Pedro; unidos a ele, estamos unidos a Cristo.
Jesus continua perguntando-nos: “quem dizeis que eu sou?” Para responder, não basta procurar na memória alguma fórmula que aprendemos no Catecismo, ou ouvimos de outros ou lemos nos livros. É preciso procurar no coração, em nossa fé vivida e testemunhada. Assim descobriremos o que Jesus representa, de fato, em nossa vida. À essa pergunta(quem dizeis que eu sou?), Pedro é o primeiro, com grande convencimento,proclamou : “Tu és o Messias”!Também o primeiro a reagir: “Pedro tomou-O à parte e começou a censurá-Lo”. Precisamente porque reconhece n’Ele o Messias, o Filho de Deus vivo, não pode admitir que Jesus tenha de sucumbir à perseguição e à morte. Como verdadeiro judeu, também ele se escandaliza da Cruz e considera-a uma loucura, um absurdo. Jesus, porém, não condescende e trata-o como tinha tratado o tentador do deserto: “Vai para longe de mim, satanás! Tu não pensas de acordo com Deus, mas de acordo com os homens”!(Mc 8, 33). Palavras duras que evidenciam que, qualquer tentativa para afastar a Cruz, para ambicionar um cristianismo sem o Crucificado e para eliminar o sofrimento da própria vida, é tudo inspirado por “satanás”. Por isso, Jesus, depois de ter falado aos seus mais íntimos acerca da paixão, convoca a multidão e anuncia a todos a necessidade da Cruz: “Se alguém quer vir após mim, negue-sea si mesmo, tome a sua cruz e siga-me;pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; mas quem perder sua vida por causa de Mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8, 34-35). Os apóstolos aprenderão, pouco a pouco, esta lição; todos eles, de uma ou de outra maneira, pegarão na Cruz e darão a sua vida por Cristo; e Pedro morrerá por amor d’Ele nessa Cruz que tanto o escandalizara.
Se o cristão não testemunhar a sua fé em Cristo aceitando carregar com Ele a Cruz, a sua fé é vã, está pura e simplesmente morta. O caminho por onde Jesus nos quer conduzir é um caminho de esperança para todos. A Glória de Jesus revela-se no momento em que, na sua humanidade, Ele Se mostra mais frágil, especialmente na Encarnação e na Cruz. É assim que Deus manifesta o seu amor, fazendo-Se servo, dando-Se a nós. Porventura não é este um Mistério extraordinário, por vezes difícil de admitir? O próprio apóstolo Pedro só o compreenderá mais tarde.
A dor e qualquer tipo de sofrimento são condição necessária para chegarmos à intimidade com Cristo. Com a dor – a Cruz –, acompanhamo-lo ao Calvário, não nos separamos dEle nesses momentos em que mais sente a deslealdade, a covardia e a omissão dos homens: identificamo-nos plenamente com Ele.
Mas, além disso, quando tiramos os olhos dos nossos próprios sofrimentos para os por nos sofrimentos inauditos de Cristo, esvaziamos a nossa Cruz pessoal de qualquer elemento de tragédia e solidão, e vemos nela um tesouro, uma “carícia divina” que passamos a agradecer do fundo da alma. Obrigado, Senhor!, é o que dizemos diante de quaisquer circunstâncias adversas. O Senhor retira então o que há de mais áspero, incômodo e doloroso nos nossos sofrimentos e eles deixam de pesar e oprimir; pelo contrário, preparam a alma para a oração e dilatam o coração para que seja mais generoso e compreensivo com os outros.
Já o cristão que recusa sistematicamente o sacrifício e não se conforma com as contrariedades e a dor, nunca encontra Cristo no caminho da sua vida, como também não encontra a felicidade. Quantos cristãos não se sentem tristes no final do dia, abatidos e sem impulso vital, por não terem sabido santificar, não já as grandes contradições, mas as pequenas contrariedades que foram surgindo ao longo da jornada!
Vamos dizer a Jesus que queremos segui-Lo em todos os passos da sua vida e da nossa, que nos ajude a levar a Cruz de cada dia com garbo. Pedimos-lhe que nos acolha entre os seus discípulos mais íntimos. “Senhor”, suplicamos-lhe, “toma-me como sou, com os meus defeitos, com as minhas debilidades; mas faz-me chegar a ser como Tu desejas” (São João Paulo ll), como fizeste com Simão Pedro.