O excepcionalismo britânico e o nosso até 1889

20/05/2023 08:00
Por Gastão Reis

O jornalista William Waack, em 05/05/2023, às vésperas da coroação do rei Charles III, na CNN, montou um interessante programa especial sobre o regime monárquico em geral, mas com foco no caso inglês. O time que abordou a questão era composto por ele e mais três analistas. Antes de passarmos à análise do que ele chamou de excepcionalismo britânico e o que denominei de nosso até 1889, reproduzo algumas colocações feitas no início do programa.

Waack nos informa que existem 42 monarquias no mundo. E levanta questões do tipo se o rei teria um papel mais simbólico, ou se o sistema em si seria mais importante do que as pessoas que o representam. Ele abre o debate com uma pergunta: “Por que o referido regime, que funcionou por séculos no passado, continua a funcionar bem em países avançados?” Ele se refere a monarquias parlamentares constitucionais, que se situam hoje nos primeiros lugares entre os países mais ricos e democráticos do mundo nas pesquisas.            

As respostas foram na linha do lado simbólico e dos cerimoniais que envolvem as monarquias e o fascínio que despertam. Os britânicos, por exemplo, aparentemente, gostam de ter um rei como Chefe de Estado. É citado o caso curioso do historiador marxista Eric Hobsbawn, que não via os reis como relíquias da Idade Média. Talvez por seu interesse no desenvolvimento das tradições em sua obra e o papel que o rei exerce nessa direção de preservar as coisas boas do passado. Afinal, árvores sem raízes morrem. (O Brasil parece ir nessa triste direção de matar suas raízes. Cabe a nós todos reagir.)

Ainda na questão de qual ´seria o papel de um rei e por que mexe tanto com o imaginário popular, um dos analistas fala na importância de devolver ao Povo o papel de protagonista, que seria uma exigência do mundo moderno. Pelo jeito, não se deu conta do fato de o rei ocupar uma posição hereditária, que está acima de grupos econômicos e partidários. Daí ter condições de estar sempre mais afinado com a defesa dos reais interesses da população, que é o pilar da sustentação do regime (e da dinastia) a longo prazo. É, na verdade, a garantia do protagonismo do Povo.  

Waack faz uma provocação oriunda de uma questão levantada por um dos analistas ao dizer que Charles III seria o primeiro rei a ser testado pelo WhatsApp: “Estaríamos perdendo a magia de um rei em função do avanço da tecnologia, expressa na IA (Inteligência Artificial)?” Neste tema, não se chegou a um consenso. Mas que é, sem dúvida, um desafio a ser enfrentado pelo novo monarca, que é diferente de sua mãe em matéria de posicionamentos mais incisivos como na questão da defesa do meio-ambiente.  

Quanto à permanência ou não da aristocracia, eu me lembrei de Paulo Francis ao afirmar que a inglesa teve um papel relevante e benfazejo. Além disso, a Câmara dos Lordes foi reformada em 1950. Hoje, apenas 10% de seus membros são aristocratas, ao passo que 70 anos atrás era composta só de nobres. Na verdade, essa recomposição reflete a capacidade de a monarquia inglesa se adaptar aos novos tempos.  Não obstante, Charles III ainda é o Chefe de Estado de 14 países, membros da Comunidade Britânica de Nações.

Passemos, agora, à questão do excepcionalismo britânico e do nosso até 1889. O conceito de excepcionalismo britânico se refere ao modo de ser dos ingleses, e não apenas ao Império em seu auge de 33 milhões de km2. Waack pergunta se o futuro levará ao abandono da ideia desse excepcionalismo. A resposta poderia ser dada pelo diplomata Caio de Freitas em seu livro, que nos fornece uma pista segura em seu título: “Um Canal Separa o Mundo”.  Ele se refere ao canal da Mancha, que seria a confirmação geográfica do lado diferente dos ingleses e de sua singularidade.  

Um bom exemplo seria o modo como era cobrada a conta de luz em tempos idos na Inglaterra. A empresa fornecedora de energia enviava por correio um cartão para o cliente. O consumidor ia até o medidor e anotava quanto havia consumido e o reenviava para empresa, que então lhe mandava a conta mensal. Quantos países no mundo, na época, teriam condição de fazer o mesmo? Ainda há, sem dúvida, outros canais de separação do modo de ser dos ingleses em relação ao resto do mundo.  Nas colônias, entretanto, houve diferenças perversas, como o absurdo imposto sobre o sal na Índia que Gandhi conseguiu derrubar.

Que tipo de excepcionalismo seria o nosso e quando ele teria ocorrido no Brasil? Uma volta no tempo ao século XIX nos fornece um belo exemplo de como a coisa se deu no Brasil. E aí vamos bater na moldura político-institucional da constituição imperial de 1824. Por quê? Muito simples. Ela dispunha do mecanismo do poder moderador, que era um poderoso instrumento para controlar os desmandos do andar de cima, que hoje manda e desmanda no país a seu bel prazer, e de modo estapafúrdio, para a indignação ampla, geral e irrestrita da população.

Agora, seria legítimo, caro(a) leitor(a), me perguntar como era a percepção de nossos vizinhos latino-americanos em relação ao Brasil no tempo do Império. E aqui está o argumento mais forte. A grande diferença é que tínhamos um regime parlamentarista, com ampla liberdade de imprensa e de respeito ao dinheiro público, virtudes que o presidencialismo latino-americano dos nossos vizinhos jamais possuiu desde seu processo de independência no início do século XIX.     

A comprovação de que nos viam como um país diferente foi a reação de pelo menos três países da região. Vale a pena repetir o que disse o presidente da Venezuela quando soube do golpe militar que (des)proclamou a república: “Pronto, lá se foi a única república de fato que existia na América Latina!” E foi acompanhado no lamento pelo presidente do Peru e mais um outro, que não me recordo qual foi. A legitimidade de sermos uma exceção está respaldada pela visão de nossos vizinhos, e não por nenhuma empáfia de nossa parte. O lado triste é que a república se tornou a ré-pública, uma marcha à ré no interesse público, que eterniza nossas desigualdades. Reagir é preciso.   

Assista: Dois Minutos com Gastão Reis: Economia Esquizofrênica:

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