O General Kutuzov e Dom João VI: Dois pesos e duas medidas

03/ago 08:00
Por Gastão Reis

A figura do general russo Kutuzov (1759-1813) adquiriu dimensão histórica no enfrentamento da invasão da Rússia ordenada por Napoleão, em 1812. Ele já estava um tanto envelhecido. Mas teve a lucidez de pôr em prática uma estratégia de guerra conhecida como a de “terra arrasada” contra Napoleão. Ao invés de bater de frente com o exército francês logo que o território russo foi invadido, ele ordenou uma retirada estratégica sem lhe dar combate direto.

Quando os soldados franceses estavam às portas de Moscou, tomou a decisão radical de esvaziar e incendiar a cidade, deixando-a desprovida de gêneros alimentícios, de combustíveis ou armamentos que permitissem a Napoleão reabastecer suas tropas já exaustas. A saída para o Corso foi bater em retirada em pleno, e rigoroso, inverno russo. Para piorar tudo, Napoleão não estabeleceu cadeias de abastecimento para seu exército, e ainda houve falhas em termos de dispor do equipamento correto.

E foi assim que nasceu a narrativa de que o General Inverno era o melhor comandante militar russo. Literalmente, congelou, e matou, milhares de soldados franceses. Só então foi que Kutuzov ordenou o ataque russo aos franceses em retirada. Liquidaram milhares de soldados famintos e exaustos, atacando-os impiedosamente pela retaguarda. Napoleão invadiu a Rússia com um exército de 500 mil homens, e perdeu 420 mil nessa retirada. Foi um fator decisivo no encolhimento de seu poderio militar, que desabou, em 1815, na batalha de Waterloo. Foi finalmente derrotado pelo general inglês Wellington. 

(Não obstante essa lição da História, Hitler incidiu no mesmo erro, que consolidou a fama do Gal. Inverno russo. No caso de Stálin, é curioso que ele tenha acreditado no Pacto Molotov-Ribbentrop de não-agressão mútua de dez anos entre a Alemanha e a União Soviética. Quando tomou conhecimento da invasão alemã, Stálin entrou em modo catatônico de imobilidade por alguns dias. Finalmente, e aos poucos, conseguiu se recuperar, e tomar providências).

Nos registros históricos, a estratégia de Kutuzov virou um marco reverenciado de esperteza bélica e senso de oportunidade na reação ao, até então, invencível Napoleão. Kutuzov enfrentou a oposição do generalato russo e dos oficiais mais jovens, sofrendo inclusive acusações de que estava decrépito. Mas teve o apoio do czar, a acabou vitorioso e celebrado, tendo morrido no ano seguinte, em 1813, coberto de glória.

Passemos agora ao caso de Dom João VI, enfrentando o mesmo Napoleão, em sua retirada estratégica para o Brasil. A decisão, longamente ponderada por ele e seus conselheiros, teve o mérito de tornar Portugal inconquistável mesmo que geograficamente ocupado, como, de fato, o foi por pouco tempo. Mais: preservou a integridade do império português que lhe permitiu participar das negociações, após a queda de Napoleão, com status de país vencedor. Foi talvez o único monarca europeu a quem Napoleâo respeitava como estrategista.

Por muito tempo, a narrativa sobre a vinda de Dom João VI foi resumida, no Brasil, em três palavras: fujão, medroso e glutão. No tétrico filme de Carla Camurati “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, a figura de Dom João VI beirava a do débil mental interpretado pelo ator Marco Nanini, um papelão do qual ele deve ter se arrependido mais tarde face à repulsa despertada pelo filme até mesmo no meio artístico bem-informado.

Glutão, ele era mesmo, como vários outros monarcas. Retirada estratégica, entretanto, passa a ser vista como simples fuga, não obstante o veredito do próprio Napoleão como tendo sido ele o único que o enganou. Quanto ao medroso, não se encaixa nada bem. Ter medo é reação humana normal. Só é fatal quando imobiliza a pessoa. Ele teve a coragem de enfrentar o Atlântico, pondo em risco sua própria dinastia. E evitar que Portugal fosse conquistado e humilhado, como a Espanha, onde Napoleão colocou seu irmão no trono.  

Mas avaliar uma figura histórica requer garimpar diferentes opiniões de contemporâneos abalizados. Foi o caso de William Beckford, inglês culto e muito rico, que visitou D. Joao VI no Palácio de Queluz, em 1874. Ele achou o príncipe afável, sagaz e articulado, como nos informa Neill Macauley, autor de uma excelente biografia de D. Pedro I. Beckford disse mais sobre D. João VI: “havia uma presteza, uma notável facilidade na sua maneira de expressar-se”. Portanto, tratava-se de alguém intelectualmente articulado. E nada a ver com a figura patética mostrada pela Camurati em seu péssimo filme.

Em suma, Kutusov, respeitado e venerado; Dom João VI, avacalhado.

Essa sina destruidora de grandes figuras de nossa história se manifesta também em relação a D. Pedro I, o fauno insaciável, e à Princesa Isabel, pau mandado do marido, o Conde D’Eu. No caso de D. Pedro I, além de Neill Macaulay, cabe mencionar, entre os historiadores nacionais, Iza Salles, autora de “O coração do Rei”, Editora Planeta, 2008, em que ela mudou da água para o vinho ao fazer suas pesquisas sobre ele para escrever seu livro. Confessa que ela e seu grupo, em tempos passados, estavam entupidos dos Grundrisse de Marx, e incapazes de reconhecer um príncipe realmente grande.

Quanto à Princesa Isabel, a narrativa sobre ela da dita historiadora Mary Del Priore, numa entrevista dominical dada ao Globo, de página inteira, ela afirmou que Isabel só se preocupou com a abolição seis meses antes de assinar a Lei Áurea. Foi Isabel, como Regente do Império, que assinou a Lei do Ventre Livre, em 1871, que também criou um fundo de alforria. Portanto, 17 anos antes de 1888. Um caso muito sugestivo foi o de Regina Echeverria, jornalista do Estadão, autora do livro “A História da Princesa Isabel – amor, liberdade e exílio”. No lançamento de seu livro em Petrópolis, ela disse que, em sua pesqui-sa de dois anos para escrever o livro, sua visão de Isabel mudou radicalmente.

A origem dessas narrativas, brutalmente distorcidas, conseguiram fazer um trabalho diabólico para derrubar nossa autoestima nacional. A boa notícia é que o panorama historiográfico está a restaurar a verdade com fatos bem documentados. Até quando, dois pesos e duas medidas? 

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