O inferno de Schiaparelli desperta polêmica na semana de alta-costura em Paris

28/01/2023 08:32
Por Alice Ferraz / Estadão

As apresentações das coleções de Alta-Costura em Paris que aconteceram nos últimos dias tomaram a atenção de aficionados por moda e profissionais do mercado. Um desfile em particular, no entanto, ganhou destaque entre um público leigo e mais amplo e com isso tomou conta das redes sociais. A apresentação em questão foi da marca francesa Schiaparelli, que provocou reações inflamadas ao trazer para a passarela vestidos adornados por reproduções hiper-realistas de cabeças de animais selvagens, leão, loba e leopardo.

A grife, comandada pelo diretor artístico americano Daniel Roseberry, nasceu no final dos anos 1920 pelo trabalho de Elsa Schiaparelli que atraiu admiradores após fazer para si mesma peças com o que viria a ser uma de suas assinaturas: o trompe l’œil. A técnica consiste em “enganar o olho” ao criar ilusões óticas e faz parte do DNA da marca. Outro elemento-chave quando falamos de Schiaparelli é o surrealismo. Os conceitos são tão fortes na grife que duas das peças mais conhecidas criadas por Elsa são um chapéu com formato que remete a um sapato e um vestido estampado com um desenho fidedigno de uma lagosta. Desde seu início, a história da marca é pautada por transgressões, exageros e ironias, tudo feito de uma forma extremamente intelectualizada e com primoroso rigor técnico.

Na marca desde 2019, Roseberry acumula êxitos ao unir seu olhar pessoal e criativo às raízes da marca – a interseção entre o mundo das artes ao representar o universo surrealista pela linguagem da moda – e nesta última coleção não foi diferente.

Para esta temporada, o americano se inspirou no livro A Divina Comédia, de Dante Alighieri, uma história que se desenvolve em torno da imagem do inferno criado pelo escritor italiano. Na coleção chamada Inferno Couture a Schiaparelli deixa clara sua inspiração literária e descreve a mensagem central com a frase: “O paraíso não pode existir sem o inferno, não existe alegria sem sofrimento, não há o êxtase da criação sem a tortura da dúvida”. Com isso em mente, a marca trouxe roupas pautadas pelo contraste entre extremos marcadas por dramaticidade dantesca.

‘Fogo inextinguível’

A cantora americana Doja Cat foi uma das escolhidas para vestir a nova coleção e chegou ao desfile no Petit Palais, em Paris, coberta por 30 mil cristais Swarovski vermelhos, que Roseberry definiu como uma representação do “fogo inextinguível” do inferno. Outra escolhida foi Kylie Jenner, fenômeno nas mídias sociais, que esteve presente com um dos vestidos: um tubinho preto com uma enorme cabeça de leão aplicada no ombro. Associado à imagem de Kylie, o vestido se espalhou pelas redes sociais e com a visibilidade surgiu a polêmica.

Além do leão, também cruzaram a passarela um casaco de loba – desfilado por Naomi Campbell – e um vestido com busto de leopardo, todos com aparência extremamente verossímil, mas feitos de espuma esculpida à mão, resina, lã e pele falsa de seda. No entanto, os três animais, que representariam as feras na porta do inferno de Dante como símbolos de luxúria, orgulho e avareza, foram lidos de forma deturpada pelo público.

Ao desassociar as imagens de seu conceito inicial, milhares de pessoas criticaram a marca por, supostamente, estimular a crueldade animal. Muitos chegaram a acreditar que as cabeças e peles eram realmente de animais. “É inaceitável. O que vem depois? Rostos de bebês?”, comentou uma usuária do Instagram no perfil da marca. Curiosamente, faces e elementos do corpo humano – não necessariamente de bebês – são constantes no trabalho de Roseberry. Pense em botas com metais que imitam dedos dos pés e óculos que mimetizam os olhos com precisão.

As críticas expõem um dos lados mais negativos dessa facilidade de difusão de imagens online: o julgamento imediato e sem contexto. Em um desfile de alta-costura, fantasia, arte e moda se misturam. Quando uma casa de moda como a Schiaparelli, com toda a sua herança surrealista, se apropria da imagem de cabeças de animais, ou de partes do corpo humano e as leva para a passarela, a intenção é a teatralidade, é contar uma história. E neste caso a narrativa não era sobre a caça ou qualquer outro tema relacionado à crueldade animal. As cabeças foram feitas do zero, à mão, com um processo artesanal e minucioso. “Feitas para parecerem o mais realista possível, celebrando a glória do mundo natural”, escreveu a marca.

Mensagem

Nesse tipo de desfile, a passarela extrapola o consumo, se torna um palco, espaço de liberdade criativa e de expressão. Em uma coleção de moda a mensagem está no todo, na coletividade das peças, e não em cada uma individualmente.

Com as imagens tiradas de contexto, a polêmica tomou proporções tão grandes que até mesmo o Peta – maior organização global que trabalha pela proteção dos animais – defendeu a Schiaparelli. Em entrevista ao portal americano TMZ, Ingrid Newkirk, presidente da ONG, comentou: “[A ROUPA]Celebra a beleza do leão e pode ser um ícone contra a caça por troféus, nas quais as famílias de leão são destruídas para satisfazer o ego humano… Essas cabeças de animais maravilhosamente inovadoras e tridimensionais mostram que onde há vontade há um jeito”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Últimas