O lado negro da força e a política

29/08/2020 00:01

                                                  

A série de filmes que compõe a saga “Guerra nas Estrelas” deixou sua marca na história do cinema mundial. Lord Vader, com aquela voz que lembra panela de pressão soltando vapor aos poucos, encarna a figura do Mal. Yoda, o pequeno jedi, é o líder da ordem que vela pelo Bem. De sua voz serena emana sabedoria e tranquilidade. Lord Vader, por sua vez, nos remete a uma realidade apavorante a que o mundo real já esteve exposto quando nos lembramos de personalidades como Stálin e Hitler. Certamente o sonho recôndito de ambos era transformar a humanidade em robôs do tipo “O Exterminador do Futuro”.

        No panorama político brasileiro, fica a impressão de que Lord Vader levou a melhor até aqui. Mas há luzes no fim do túnel. Analistas e articulistas vêm constatando que o sistema político brasileiro está fazendo água por todos os lados. Pior: o Judiciário tem revelado facetas assustadoras.  Em uma de suas últimas   decisões, o STF revogou o artigo 5º da Carta de 1988, aquele que nos garante a igualdade perante a lei. Numa votação marota e apertada de 6 a 5, proclamou a irredutibilidade da remuneração dos funcionários públicos sob quaisquer circunstâncias, mesmo em tempos de coronavírus. Sacrifício é para o setor privado, que se vire com desemprego e salário zero. (E há ministros da Corte que realizam um trabalho diuturno para anular sentenças da Lava-Jato!)

        Em entrevista ao Estadão, o senador Tasso Jereissati afirmou que o sistema político brasileiro estava falido. Fernando Gabeira, em artigo publicado em O Globo, em 17.8.2020, “A metamorfose do mito”, está indo na mesma dire-ção. Após tecer comentários sobre as contradições do governo Bolsonaro, ele, desiludido, termina o artigo perguntando: “Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com o nosso sistema político?” 

       Elites intrinsicamente desonestas, a rigor, só vicejam e crescem se houver solo fértil para a corrupção desenfreada. O caso brasileiro é bastante ilustrativo quando damos ouvidos a figuras como Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco e Machado de Assis, unânimes em reconhecer a queda brutal da qualidade do homem público brasileiro desde 1889. Foram homens que viveram as décadas finais do Império e as primeiras da república. Testemunhas oculares dos  novos (maus) tempos em espiral crescente. Em conversa com um cientista político formado em Stanford, membro da família Orleans e Bragança, sobre as virtudes do poder moderador, que se foi em 1889, ele resumiu bem o desastre: o País deixou de ter o principal instrumento de defesa do interesse público.

       Já o cineasta Cacá Diegues, em artigo publicado em O Globo, de 9.7.2017, intitulado “Sem poder moderador”, tece considerações que não correspondem aos fatos nem do nosso passado, nem dos dias atuais da moldura político-institucional dos países europeus, que o mantêm, em outro formato, ao separar chefia de governo da de Estado. Ao juntarmos estas duas chefias no presidente da república, inventamos um Frankenstein milagroso capaz de ser o fiscal de seus próprios atos, função que deveria ser exclusiva do chefe de Estado.

       Trata-se de ingenuidade política em relação à qual Karl Popper parece ter dado a palavra final.  A questão central em sua visão não é quem deve governar (filósofos, poetas, trabalhadores, empresários, ou seja lá quem for), mas sim dispor de um mecanismo que permita pôr fim rápido a maus governos.  Essa função o poder moderador exercia ontem e exerce ainda hoje nos países europeus e de outros continentes na pessoa do chefe de Estado. 

      Portugal dispõe até hoje dessa sábia separação entre chefia de governo e de Estado, que nos foi legada quando de nossa independência, tendo vigorado ao longo do Império. Mesmo depois de proclamada a república, Portugal não abriu mão do parlamentarismo. A separação entre as duas chefias é uma ferramenta que permite solucionar as crises sem romper o marco legal.  

    

Mas o lado negro da força parece que está começando a se enfraquecer. E os sinais vêm até de onde não se esperaria. É sintomática a declaração do general Paulo Chagas: “Somos nós, do Exército, que temos na consciência o peso […] da derrubada do Império e conhecemos a responsabilidade que nos cabe na instauração desta República que, até os dias de hoje, envergonha a história política do Brasil.” E ele não está sozinho no Exército (Marinha e Aeronáutica) na percepção do desastre institucional oriundo do golpe de 1889. 

O reconhecimento deste fato escancara quão perniciosa foi a presença de militares na política. Os políticos do Império tinham plena consciência disto, e se horrorizavam com o que já acontecia, no século XIX, nos países hispânicos vizinhos em matéria de golpes e intervenções militares. A supremacia do poder civil era levada a sério, em especial no controle pelo Parlamento dos orçamen-tos das forças militares, hoje numa zona de sombra e omissão dos civis, como nos informa o historiador José Murilo de Carvalho.

Humberto de Campos, conhecido escritor e membro da ABL, se queixava do silêncio do debate que deixou o País sem voz após a queda da monarquia. Hoje, a discussão da questão república versus monarquia está mal colocada. O debate substantivo, levadas em conta as tradições e cultura de cada povo, é saber qual o melhor regime para preservar a res publica, ou seja, o interesse público. Tanto monarquias quanto repúblicas podem fazê-lo, mas certamente não foi o caso brasileiro após 130 anos de república. 

O balanço final foi uma verdadeira ficha policial: corrupção sistêmica, desigualdade brutal e políticos que não nos representam. Aristóteles via na política a mais nobre das atividades públicas. Deveria ter acrescentado desde que os políticos sejam mantidos sob rédeas curtas com o voto distrital puro e a possibilidade de revogação de mandatos (recall). Só assim quem paga a conta, o povo, assumiria o controle. A ausência desses dispositivos dá força ao lado negro da política.  Que tal pensarmos numa monarquia parlamentar?   

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